Anotações sobre as propostas legislativas a respeito do whistleblowing no Brasil
Como foi possível notar a partir das duas últimas colunas publicadas (AQUI e AQUI), as regras sobre whistleblowing operam em diversos sentidos (v.g., proteção trabalhista, regras procedimentais acerca das informações prestadas, sanções penais para retaliações, prêmios às informações que conduzam a investigações exitosas etc).
Em que pese essa prática estar difundida em muitos países, no Brasil o que temos até o momento são apenas Projetos de Lei em trâmite – ou mesmo arquivados -, que em maior ou menor extensão pretendem inserir em nosso ordenamento positivo a figura do whistleblowing ou reportante.
Antes de analisar as propostas legislativas existentes, deve-se desde logo promover uma distinção entre a figura do reportante e a figura do colaborador, que vem disciplinada na Lei de Organizações Criminosas (art. 4º a 6º, da Lei 12.850/13).
Enquanto o delator ou colaborador é um cidadão que pratica um crime e opta – em troca de benesses legais vinculadas precipuamente à redução de pena – por confessar os fatos e fornecer elementos probatórios que permitam a identificação de outros coautores e partícipes do crime, da estrutura hierárquica ou divisão de tarefas da organização criminosa, previna crimes futuros da organização, possibilite a recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações penais, etc (art. 4º, da Lei 12.850/13), o reportante é um cidadão que não participa da prática em tese ilícita, mas tão somente tem conhecimento da sua ocorrência por conta de sua profissão, ou obtém informações que contribuam para as investigações e resolve compartilhar essas informações em troca de proteções e benefícios legais (SCHULTZ, 2005, p. 89-90).
Outro ponto preliminar à análise das propostas legislativas consiste em saber se a internalização da figura do reportante em nosso ordenamento implicaria em violação a qualquer dispositivo constitucional ou infraconstitucional. E a resposta parece ser negativa.
No plano constitucional, não há qualquer vedação a que um cidadão que tome conhecimento da prática de um ilícito – seja ele civil, administrativo ou penal – comunique essa ocorrência a autoridades públicas, para que providências investigativas e/ou repressivas possam ser encetadas.
E nesse contexto, adotando-se a ideia matriz do princípio da legalidade – que dirigida ao âmbito privado significa que o cidadão pode fazer tudo o que a lei não veda expressamente -, é consectário lógico que a figura do reportante não colide expressamente com o texto constitucional.
No plano infraconstitucional, ao contrário de uma vedação, há – no que diz com a esfera criminal – expressa autorização legal no sentido de estimular a que qualquer do povo informe às autoridades públicas a respeito de crime do qual tome conhecimento (art. 5º, §3º do CPP).
Esse dispositivo é inclusive objeto do PLS 664/2011, que pretende inserir a previsão de recompensa ao noticiante, no importe de 10% (dez por cento) do valor recuperado, após a denúncia de crimes tributários ou contra a Administração Pública.
Feitas essas observações iniciais, são identificados no Brasil 5 (cinco) PL’s que versam – em maior ou menor extensão – sobre a tentativa de internalizar o whistleblowing no ordenamento jurídico brasileiro. São eles:
(a) PLS 664/2011, de autoria do Sen. Walter Pinheiro, que tem por finalidade alterar o “§ 3º do art. 5º do Código de Processo Penal para garantir retribuição pecuniária à pessoa que dá notícia de crime contra a Administração, de cujo processo resulte recuperação de valores”;
(b) PL 1.701/2011, de autoria do Dep. Manato, que pretende instituir o Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção;
(c) PL 3.506/2012, de autoria do Dep. João Campos, que busca estabelecer o programa de recompensa a delatores de crimes cometidos contra a Administração Pública;
(d) PLS 362/2015, de autoria do Se. Aloysio Nunes Ferreira, que dispõe sobre medidas de proteção e de incentivo a trabalhadores que denunciem a prática de crime, ato de improbidade, violação de direitos trabalhistas ou qualquer outro ilícito verificado no âmbito da relação de trabalho;
(e) PL 3.165/2015, de autoria do Dep. Onyx Lorenzoni, que pretende instituir “o Programa de Incentivo à Revelação de Informações de Interesse Público“.
O PLS 664/2011 tem por finalidade apenas e tão somente alterar a regra do art. 5º, § 3º, do CPP, para o fim de inserir a previsão de que o cidadão que informar às autoridades públicas sobre a ocorrência de um ilícito penal tributário ou contra a administração pública, será agraciado com o correspondente a 10% (dez por cento) do valor que vier a ser recuperado com a informação prestada.
Segundo a justificativa do precitado projeto de lei, a alteração se justifica pois
"as pessoas não se sentem estimuladas a denunciar a ocorrência de crimes porque certamente correrão risco de desagradar criminosos. (...) É preciso criar um estímulo para a comunicação dos crimes (...). Esse estímulo serviria apenas para amenizar a situação constrangedora, ou mesmo de risco, assumida pelo comunicante."
Como se vê, o objetivo da alteração pretendida é bastante singelo e não corresponde, na atualidade, à extensão conferida à prática do whistleblowing no cenário internacional, que não se reduz a uma simples recompensa financeira para o cidadão que presta informações sobre a ocorrência de um ilícito.
As limitações da proposta analisada são de diversas ordens:
(a) trata apenas sobre informações a respeito da ocorrência de crimes, enquanto que no cenário internacional o whistleblowing pode se referir a ilícitos não penais;
(b) na maioria dos países em que a prática é adotada, foram criados órgãos específicos (ou setores específicos em órgãos existentes) para analisar a viabilidade de início das investigações, o que não foi abordado no precitado projeto e;
(c) o whistleblowing se refere, essencialmente, à informações fornecidas por pessoas que trabalham ou são fornecedores diretos das corporações que praticam as práticas espúrias, motivo pelo qual as legislações que tratam da temática atinente ao whistleblowing preveem regras rígidas de proteção desses funcionários, vedando, por exemplo, demissões desmotivadas, transferências desnecessárias etc, questão completamente silente no projeto.
Por seu turno, o PL 1.701/11, que tem por finalidade instituir o Programa Federal de Recompensa e Combate à Corrupção, possui previsões mais abrangentes. Segundo a justificativa que o acompanha,
"a corrupção tem sido um grande obstáculo ao desenvolvimento nacional. Sua prática não só enfraquece os valores éticos, como também prejudica o sistema democrático e a economia do país", razão pela qual "o aumento do número de denúncias efetivas acarretará a prevenção e um eficaz combate à corrupção."
Em que pese fazer específica referência ao combate à corrupção, há a previsão de “retribuição em pecúnia pela oferta de informações imprescindíveis à elucidação de crime de ordem econômica contra a administração e o patrimônio públicos” (art. 1º).
E o Projeto não se limita à informação de crimes, admitindo igualmente que o reportante informe sobre a ocorrência de “ilícitos administrativos ou irregularidades” (art. 2º), exigindo ainda que as informações sejam acompanhadas, se possível, de provas e documentos (art. 3º, II).
No que diz com os mecanismos de proteção ao reportante, há a previsão de que os órgão encarregados do recebimento das informações mantenham o anonimato e o sigilo da fonte (art. 3º, parágrafo único), admitindo-se ainda o ingresso do reportante no Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas, caso necessário (art. 7º).
O principal mecanismo de estímulo à prestação de informações relevantes sobre os ilícitos segue sendo, como em todos os países que adotam a prática, a recompensa pecuniária. Nesse sentido, o Projeto prevê “uma recompensa em moeda nacional correspondente a 10% (dez por cento) sobre o total apurado dos valores e bens apreendidos” (art. 4º, caput), sendo que esse percentual “não poderá ser superior a 100 (cem) salários mínimos vigentes à época do pagamento da recompensa ao informante.” (art. 4º, parágrafo único).
As previsões do PL 1.701/11 – inegavelmente mais abrangentes do que a proposta anteriormente analisada – pecam ao não versarem sobre proteções trabalhistas aos reportantes, medida que no cenário internacional se revelam necessárias, notadamente porque o reportante é, como regra geral, pessoa vinculada à corporação cujos ilícitos serão informados.
Já o PL 3506/2012, além de pretender inserir determinados contra a administração pública no rol de crimes hediondos, também busca estabelecer o programa de recompensa a delatores de crimes cometidos contra a Administração Pública.
A justificativa do projeto de lei, no ponto específico da recompensa, caminha no sentido de criar incentivos, pois “a falta de engajamento da população ocorre pela ausência de mecanismo incentivando as pessoas a participar da luta contra a corrupção.”
Nesse contexto, o projeto prevê que, em crimes contra a administração pública, o delator ou delatores receberá(ão), a título de recompensa pelas informações prestadas e que efetivamente permitam a elucidação dos fatos, valor correspondente a 1% dos danos comprovadamente causados ao erário (art. 3º), estabelecendo-se ainda outros critérios para que a recompensa seja devida pelo poder público (art. 4º), bem como regras sobre o sigilo das informações prestadas e da identidade do colaborador (arts. 4º e 6º).
Esse PL também encontra limitações em relação à compreensão do que seria o instituto do whistleblowing na atualidade, pois se limita à informações sobre crimes e não abrange outros ilícitos, como soi acontecer com essa prática na modernidade.
Porém, o maior problema da proposta talvez seja confundir whistleblowing com delação ou colaboração premiada, que são institutos distintos. Como anteriormente se advertiu, o colaborador ou delator é autor ou partícipe do crime, enquanto que o reportante é alguém que, em decorrência de suas atividades profissionais ou função pública, toma conhecimento do ilícito, porém não participa de sua prática.
E no que diz com a colaboração premiada, há regras positivadas na Lei 12.850/13 que preveem benefícios a quem opta pela celebração do negócio processual, havendo inclusive experiência prática – decorrente da Operação Lava Jato – na qual colaboradores foram agraciados, nas propostas de acordo, com dedução da pena pecuniária nas hipóteses em que, a partir dos fatos esclarecidos e documentos apresentados, fosse possível localizar e recuperar valores e bens produto de ilícitos penais.
Logo, ainda que possa ser admissível a previsão, no ordenamento positivo, da obrigatoriedade de recompensa pecuniária ao delator, talvez o ideal fosse deixar esse espaço aberto para a negociação entre órgão de acusação e colaborador – mesmo porque a experiência evidencia que nem sempre a recompensa pecuniária ao colaborador é cabível -, e prever a recompensa obrigatória apenas ao reportante.
Mais recentemente tramitou o PLS n.º 362/2015, contendo medidas de proteção e de incentivo a trabalhadores que denunciem a prática de crime, ato de improbidade, violação de direitos trabalhistas ou qualquer outro ilícito verificado no âmbito da relação de trabalho. A justificativa ao projeto é bastante extensa e talvez tenha sido a única a se preocupar com a realização de um estudo mínimo sobre o cenário internacional das práticas de whistleblowing. Afirma-se, ao final que o objetivo das medidas consiste em
"incentivar uma cultura de combate à corrupção e de outros atos ilícitos que somente prejudicam o desenvolvimento do País e, consequentemente, a sociedade brasileira. Além de propiciar a recuperação de valores decorrentes de atos ilícitos, os instrumentos constantes do presente projeto de lei prevenirão a prática de tais ilícitos, bem como fomentarão a participação democrática no controle da legalidade."
Com efeito, as regras do projeto são bastante abrangentes. As proteções legais se estendem a reportantes que sejam funcionários públicos ou privados (art. 1º, § 1º), e abrangem as informações prestadas de boa-fé sobre ilícitos penais, administrativos ou nas relações de trabalho (art. 2º, caput).
Por outro lado, informações sabidamente inverídicas ou prestadas com má-fé deliberada – que não será presumida – estão sujeitas à sanções nas esferas cível, penal e administrativa (art. 2º, § 3º).
No rol de atos protetivos, fala-se em preservação da identidade (art. 2º, § 1º), a inversão do ônus da prova da alegação do reportante (art. 4º, § 2º) – o que demandaria filtragem constitucional, pois em sede criminal não seria admissível cogitar da precitada inversão, ainda que em outras esferas ela possa ser concebida -, a impossibilidade de responsabilização civil, penal ou administrativa pelas informações prestadas de boa-fé (art. 3º, caput), bem como a impossibilidade de demissão, perda ou redução de qualquer benefício ou vantagem trabalhista em decorrência das informações prestadas (art. 3º, § 1º), sob pena de reversão do ato e aplicação de multa ao empregador (art. 3º, § 3º, I a IV e § 4º).
No que diz com os incentivos legais aos reportantes, o projeto de lei prevê prêmios, concessão de honrarias, promoção na carreira e recompensa pecuniária, no montante de 15% a 50% do valor da multa administrativa aplicada a quem praticou o ato ilícito (art. 4º, caput, § 1º, I a III e § 2º).
Contudo, em que pese a abrangência e detalhamento do referido PL, seu autor, o Sen. Aloysio Nunes Ferreira, retirou-o de pauta, tendo sido a proposta arquivada em definitivo.
A proposição mais recente é o PL 3.165/2015, que visa instituir o Programa de Incentivo à Revelação de Informações de Interesse Público, como incentivo à divulgação às autoridades, de atos que configurem crime ou improbidade administrativa. A justificativa do Projeto, como todas as demais, caminha no sentido da necessidade de proteção e incentivo aos reportantes, bem como na necessidade de “combate à corrupção.”
O PL, ao conceituar “informação de interesse público“, engloba em uma mesma regras as delações e quaisquer outras declarações, dados ou referências que possam conduzir a investigação e/ou processo por ato ilícito (arts 2º e 3º)
Há igualmente a previsão de medidas de resguardo dos informantes, tanto no que diz com a integridade física e psíquica, como em relação a estabilidade no setor privado (art. 4º, § 2º) e outras proteções funcionais na esfera pública (art. 10 e 11), prevendo-se punições em face de retaliações, represálias ou discriminações de qualquer ordem (art. 8º), bem como a inclusão no programa de proteção de vítimas e testemunhas (art. 9º e art. 13, III).
No que se refere aos benefícios econômicos, o PL prevê que o reportante que prestar informações efetivas que conduzam à investigação e/ou processo por condutas ilícitas, fará jus a recompensa econômica no importe de até 10% (dez por cento) sob o valor total dos bens recuperados, danos reparados e/ou do produto/proveito do crime recuperado (art. 14). Nas hipóteses em que o reportante também ocupar a posição de delator, o PL prevê redução de pena (art. 16).
Trata-se de PL que também possui uma maior abrangência do instituto do whistleblowing, em comparação com as primeiras iniciativas e propostas legislativas analisadas.
Questão inovadora consiste em abordar, conjuntamente, a figura do reportante e do delator. Com relação a este último, ainda que a proposta incorpore a recompensa pecuniária ao colaborador – o que hoje pode ocorrer, facultativamente, no âmbito da negociação do acordo -, amplia o poder punitivo do Estado, na medida em que as atuais regras sobre colaboração preveem a possibilidade de perdão judicial – a depender de circunstâncias objetivas da colaboração e subjetivas do colaborador (art. 4º, caput, I a V e § 1º) – enquanto o projeto menciona apenas a possibilidade de redução de 1/3 a 2/3 da pena.
REFERÊNCIAS
SCHULTZ, David. HARUTYUNYAN, Khachik. Combating corruption: The development of whistleblowing laws in the United States, Europe, and Armenia. International Comparative Jurisprudence. v. 1, I. 1 (dec. 2005).