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Prova para fins penais tributários e ilicitude

Prova para fins penais tributários e ilicitude

Já dizia Afonso Arinos de Mello Franco que o sentimento de Justiça repousa na noção da limitação de poder: sua contenção para que não extravase na prepotência. Todo o poder, sobretudo o estatal, deve encontrar limites expressos e previamente estabelecidos. Isso, por que é da essência da alma humana a tentação a abusar do poder, tanto mais, quanto maior ele seja.

É perceptível, ultimamente, que o aumento do apetite arrecadatório do Estado tem resultado no incremento da atividade fiscalizatória das autoridades fazendárias. Fosse apenas isso, e não se faria qualquer objeção, porquanto se trata de regular atividade estatal, em busca de arrecadar os tributos que servem ao custeio dos serviços públicos demandados pela sociedade.

Ocorre que essa voracidade tem descambado para o terreno da ilegalidade. Tem se tornado prática corriqueira o comparecimento de agentes da administração tributária do Estado do Rio Grande do Sul, no âmbito de ações fiscalizatórias, em dependências de empresas, arrecadando toda a sorte de papéis e documentos que lá encontram, sob o argumento de que se trata de apurar eventual débito fiscal.

Não pode ser assim. A atividade de auditoria fiscal deve ser exercida de acordo com os limites estabelecidos na Constituição Federal e na legislação. Os fins não justificam os meios.

São conhecidas as situações em que, juntamente com documentos e dados concernentes à relação jurídico-tributária, o Fisco recolhe, também, extratos telefônicos e bancários de diretores ou administradores da pessoa jurídica e, especialmente destes últimos, realiza análise de cotejamento com informações concernentes à auditoria em andamento.

Nada mais abusivo e inconstitucional.

Ora, não se pode confundir a pessoa jurídica submetida a auditoria fiscal com as pessoas físicas de seus servidores, gerentes ou administradores, os quais não estão, naquele momento, sujeitos ao exame da ação fiscalizatória estatal, e não podem ter sua intimidade indevidamente devassada.

A garantia ao resguardo e ao sigilo de determinadas informações da vida pessoal dos cidadãos é legítima expressão do direito à intimidade e à dignidade humana, e recebe a tutela da Constituição Federal (artigos 1º, inciso III, e 5º, inciso X).

Aliás, não é legítimo, às autoridades fazendárias, apreender extratos bancários e telefônicos ou quaisquer outros documentos protegidos por sigilo, ainda que da própria pessoa jurídica submetida à auditoria fiscal. E ainda que a análise de informações bancárias da pessoa jurídica submetida à auditoria seja necessária ao exame fiscal, não pode ser realizada através da apreensão de extratos encontrados nas dependências da empresa. Há meios para a obtenção de dados cobertos pelo resguardo do sigilo, e, certamente, nesses meios não se inclui a indevida apreensão de extratos bancários ou telefônicos.

A Lei Complementar Estadual n.º 13.452/2010 (Lei Orgânica da Administração Tributária do Estado do Rio Grande do Sul), especialmente no artigo 18, ao elencar as atribuições dos agentes fiscais do Tesouro do Estado, deixa claro que a apreensão de bens, equipamentos, objetos, livros, papeis e documentos em qualquer meio de armazenamento, físico ou digital, somente será possível, se houver necessidade para a realização do exame fiscal.

Vale dizer, durante a ação de auditoria fiscal, somente podem ser recolhidos livros, papeis e documentos que tenham pertinência temática com a relação jurídico-tributária sob enfoque, do que se exclui possam os auditores fazendários recolher extratos bancários e telefônicos que tenham encontrado nas dependências da empresa, a uma, porque se trata de documentos que não guardam vinculação com a relação jurídico-tributária entre Fisco e contribuinte, e, a duas, porquanto não é este o meio legal para a obtenção de informações resguardadas por sigilo.

Assim, toda a informação decorrente da indevida apreensão de extratos bancários e telefônicos no âmbito de auditoria fiscal, não poderá ser utilizada em investigações e processos de índole criminal, porque se trata de prova ilícita e, portanto, insuscetível de ser validamente considerada, nos termos dos artigos 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, e 157, caput, do Código de Processo Penal.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal (ARE nº 973.685/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 21.03.2017), já se decidiu que a utilização, para fins de persecução penal, de elementos coletados em processo administrativo fiscal, somente será admitida se legítimos tiverem sido os meios de sua obtenção.

Não se diga que se pretenda manietar a atividade da administração fazendária, já que esta, ao suspeitar da prática do crime de sonegação de impostos, poderá noticiar o caso à Polícia ou ao Ministério Público, os quais dispõem de ferramentas jurídicas para a válida obtenção de dados e informações mantidos sob sigilo.

Aliás, o STF já decidiu ser possível à administração fazendária obter junto às instituições financeiras, independentemente de decisão judicial, informações bancárias dos contribuintes, desde que se trate de providência adotada no curso de processo administrativo e com prévia notificação do contribuinte.

Ressalte-se, no entanto, que o compartilhamento de dados resguardados por sigilo para finalidade diversa daquela pela qual foram especificamente obtidos, não prescinde de autorização judicial, sob pena de caracterização de prova ilícita para fins penais.

Ainda, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2390, 2386, 2397 e 2859, em fevereiro de 2016, o STF julgou válida a obtenção, pela Receita Federal do Brasil, diretamente junto às instituições bancárias, de dados bancários de contribuintes. Note-se que essa verificação diz com a pessoa submetida à relação jurídico-tributária sob apuração, e não com terceiros, ainda que diretores ou empregados da pessoa jurídica sujeita à auditoria fiscal.

Insistir em trilhar caminhos tortuosos e obscuros para alcançar determinados fins não pode levar a resultados proveitosos. Já dizia Octávio Mangabeira, ainda no século passado:

Ninguém pode tudo. Sobretudo, ninguém pode sempre.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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