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A “prova” indiciária como a principal “prova” do processo penal

Estabelece o Código de Processo Penal, em seu artigo 239, que se considera indício “a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”

Há bastante divergência sobre a definição do que seja indício. Alguns o concebem como meio de prova indireta, outros se posicionam no sentido de não se tratar de prova propriamente dita, senão de uma forma de raciocínio, explicitada e autorizada pelo artigo 239 do CPP.

Aury Lopes Jr. (2013, p. 707), por exemplo, entende que “não há que se confundir indícios com provas (ainda que toda prova seja um indício do que ocorreu)”, haja vista que ninguém pode[ria] ser condenado a partir de meros indícios, uma vez que a “presunção de inocência exige prova robusta para um decreto condenatório.”

Afrânio Silva Jardim (2016), igualmente, aduz que, sem embargo do conceito de indício estar inserido entre os meios de prova previstos no Diploma Processual Penal, não se trata, tecnicamente, de um meio probatório, senão uma forma de raciocínio, exteriorizada e admitida pelo legislador.

Não é o objetivo deste texto discutir o que seja indício. Fato é que a jurisprudência vem o concebendo como prova, afinal, a toda hora se condena com base em indícios no Brasil.

Particularmente, compartilho do entendimento de Lopes Jr (2013): a prova indiciária não deveria bastar para legitimar um édito condenatório, que, por força da presunção de inocência, deveria exigir prova robusta. Apesar disso, resta-nos abordar o mundo como ele é!

Antes de mais nada, como decorrência do dever de ser justo, devo prestar homenagens ao eminente Desembargador do Tribunal de Justiça Gaúcho, Dr. João Batista Marques Tovo, por despertar em mim, numa brilhante aula ministrada na Escola de Criminalistas de Jader Marques – a quem rendo minhas homenagens também!-, a reflexão sobre a matéria atinente a prova indiciária, que, para ser compreendida, parte da distinção das provas em diretas e indiretas.

Consoante Rogério Tadeu Romano (2013), as provas diretas são aquelas que dizem respeito ao próprio fato probando, como o depoimento de uma testemunha que presenciou o crime, a confissão do réu e o exame de corpo de delito.

Já as provas indiretas são aquelas que não se dirigem diretamente ao próprio fato probando, porém, por força do raciocínio dedutivo (ou indutivo, existe divergência sobre o assunto), chega-se a ele ou às circunstâncias que se pretende provar (ROMANO, 2013).

Os indícios e presunções, por conseguinte, inserem-se no campo das provas indiretas.

Contudo, é preciso muita cautela na valoração destas provas. Primeiramente porque uma prova direta pode ser – e na prática o é – facilmente transformada em indireta.

Vejamos um exemplo. A testemunha que presenciou o fato é uma prova direta de sua ocorrência. Inobstante, a forma de colheita dessa prova pode transformá-la em prova indireta. É o que se procede, v.g, nas Delegacias de Polícia, onde o depoimento da testemunha passa por uma filtragem: ele é controlado, interpretado e limitado pela servidor público responsável por transcrevê-lo (e, não raras vezes,  responsável pela inquirição da testemunha).

Logo, aquela prova que era direta, torna-se indireta, pois não advém diretamente da fonte, como seria o caso nos depoimentos testemunhais filmados. E, nessa transcrição, comumente formalizada em sede de investigação preliminar, muito da originalidade do depoimento se perde.

O que consta em Inquéritos Policiais e Termos Circunstanciados, assim, mesmo que a priori fosse prova direta, deve ser concebido como prova indireta, indiciária: os depoimentos, em regra, não são gravados e o que consta nos termos nada mais é do que o resultado da interpretação de quem levou os relatos a termo.

Dito de outro modo: há uma mediação, que descaracteriza a prova direta, devido ao processo de filtragem que ela sofre, submetida, ainda, aos corriqueiros métodos investigativos, que estão sujeitos ao induzimento/ sugestionamento do depoimento.

Logo, sempre que houver uma mediação/filtragem/interpretação/intermediação, deve-se ter cautela na análise da prova, que, apesar de se tratar, a priori, de prova direta, deve ser reputada como prova indireta, justamente – parece óbvio – por não ser um relato direto da vítima ou testemunha (p. ex).

Para elucidar a distinção entre prova direta e indireta, vejamos outro exemplo. Se a testemunha “A” enxerga “B” correndo com um objeto que havia sido surrupiado da vítima “C”, a testemunha “A” é prova direta (desde que não sofra filtragem/mediação em seu depoimento) da circunstância de ter visto “B” na posse do objeto, e prova indireta da autoria delitiva.

A abordagem desta matéria é de suma relevância aos operadores do Direito, máxime porque não constitui absurdo afirmar que a prova indiciária (indireta) se tornou a rainha das provas: grande parte dos éditos condenatórios brasileiros – a larga maioria! – estão fulcrados somente em indícios e presunções.

Indícios, portanto, condenam o tempo todo em nosso país. E a prova indiciária conduz à presunções, que, por sua vez, formam convicções.

O problema é que as convicções dos julgadores tendem a advir de presunções. Afinal o indício é o fato indicativo, revela as circunstâncias envoltas ao fato, que possibilitam uma conclusão.

A conclusão, com base em prova indiciária, normalmente é atingida por presunção, mediante conjecturas lastreadas na lógica e em regras de experiências, que ostentam de alta carga de subjetividade.

Não haveria exemplo melhor do que o tratamento da jurisprudência fornecido sobre os crimes de tráfico de entorpecentes e de receptação. Isso porque, inadmissivelmente, sedimentou-se uma verdadeira presunção da culpa nesses delitos, a partir de indícios, e, ao mesmo tempo, mediante inversão do ônus probatório, que, ao revés de ser todo da acusação, é inconstitucionalmente e inconvencionalmente transferido ao acusado.

Ora. Não são raras as condenações pautadas no “fundamento” de que o réu não logrou demonstrar que a droga apreendida seria para consumo pessoal ou de que o acusado não conseguiu demonstrar razoavelmente que desconhecia a procedência criminosa do bem, em tese, receptado, condenando-se o sujeito por não ter logrado comprovar a sua inocência, com fulcro nos indícios de quantidade da droga (que normalmente não é tão grande assim), ou pela circunstância do entorpecente estar fracionado (como se ele não fosse vendido assim ao consumidor!) ou, no caso da suposta receptação, do objeto ter sido alienado por um preço menor do que o de mercado ou da transação comercial ser desprovida de recibos e notas.

O disparate é que as regras probatórias do processo penal, a presunção de inocência e o preceito in dubio pro reo não estão sujeitos a negociações, de maneira que não poderiam ser, simplesmente, ignorados, desconsiderados, como se não existissem, sucumbindo perante indícios, que acabam por conduzir à presunções (por exemplo: partindo do indício de “A” ter sido flagrado com 15 buchas de maconha, e que ele não comprovou não ser traficante, limitando-se apenas a alegar que era para uso pessoal, eu, julgador, presumo ser ele traficante e assim concluo em minha livre convicção, sem amparo em provas, mas sim num indício que gerou uma presunção, correta ou incorreta, porém, certamente duvidosa!), que legitimam convicções que resultam em condenações penais, à míngua de provas robustas.

Não é que as provas indiretas não bastam para condenar. É preciso ter em mente que no indício existe apenas um grau de probabilidade, que é algo subjetivo, e, por conseguinte, varia de julgador a julgador de acordo com suas experiências de vida.

As provas indiciárias, por mais razoáveis que possam ser, não poderiam jamais resultar em inversão de cargas probatórias, mormente porque, no processo penal, o réu nada tem a provar: é dever da acusação comprovar o que alega.

Logo, se “A” é acusado de tráfico ou receptação, v.g, não é o réu que deve comprovar a sua inocência, e sim o Ministério Público a sua culpa, isto, é, incumbe à acusação demonstrar que o suposto receptador tinha conhecimento da procedência criminosa do bem, e mesmo assim o adquiriu, ou que o sujeito acusado de tráfico de entorpecentes destinaria a droga à terceiros.

A prova indiciária nada mais permite do que um juízo de probabilidade; mas, como já decidiu o Des. João Batista Marques Tovo, “o que é provável – ou, até mesmo, muito provável – ainda não é provado, no sentido de gerar certeza fundada, e esta deve ser necessariamente fundada e fundamentada, não se admitindo o alcance válido se subsistente dúvida fundada”, até porque na dúvida, pro reo (apl-crime n.º 70068653641, julgada em 18/05/2016).

Portanto, caros amigos: muito cuidado com a prova indiciária; ela é perigosa. É a que mais condena em nosso país.


REFERÊNCIAS

LOPES JR., AURY. Direito Processual penal. São Paulo: Saraiva, 2013.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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