Punição e Estrutura Social: uma análise (parte IV)
Punição e Estrutura Social: uma análise (parte IV) – Texto escrito por Gabriel Martins Furquim e Salvador Scarpelli Neto
1. Introdução
Vimos que o objetivo da nossa análise é expor as principais ideias da obra seminal de autoria Punição e Estrutura Social, de Georf Rusche e Otto Kirchheimer. Para isto, optou-se seguir o curso traçado a cada capítulo.
No presente estudo, que versa sobre os capítulos VII e VIII, veremos que as alterações da política penal vistas nas colunas anteriores não se sustentaram, não por razões humanitárias, mas em decorrência de implicações econômicas, isso é, os autores argumentam não apenas os fenômenos que determinaram a existência da deportação e suas formas – analisando o caso da Austrália e outros países – e do confinamento solitário, senão também, e sendo este o foco primordial, a falência destas formas de punição, o que está ligado às mudanças no mercado de trabalho.
Como já exposto, a cada coluna, um membro de um grupo de estudos de criminologia crítica, formado em Campinas (SP), junta-se comigo, para escrevermos; hoje teremos Salvador Scarpelli Neto.
2. A abolição da deportação
O capítulo VII da obra em questão, localizado no mesmo momento histórico do capítulo antecessor, tratará da abolição da pena de deportação. Para tanto, os autores elucidam as razões da utilização dessa espécie de punição, assim como a de sua rejeição.
A América do Norte, após Revolução Americana, por se tornar um país interdepende da Inglaterra, pôs fim à deportação, pois não mais estava sujeito ao regramento judicial inglês. Com isso, “as dilapidadas prisões inglesas foram incapazes de sustentar a situação” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.161).
Diante do excesso populacional carcerário acarretado por esse rompimento da relação colonial, ou seja, do excedente de mão de obra privada de liberdade, o governo promulgou uma lei em 1776 que estipulava, temporariamente, a substituição da deportação por trabalho pesado em obras públicas.
Nota-se através desta passagem que a política criminal, no que se refere à pessoa do condenado, mais uma vez, não o coloca no centro na punição, como sujeito em si mesmo, mas apenas como meio cujo fim é atingir um objetivo alheio à sua vontade. No caso, utilizar de sua força de trabalho em obras do Estado.
Assim, “os prisioneiros foram ocupados em drenagem de areia, terra e cascalho do rio Tâmisa por períodos de três a dez anos” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.161). Além disso, eram eles alojados em navios, conhecidos como hulks.
Apesar de todos os esforços, esta investida revelou ser um problema à carência da deportação, porque a aglomeração indiscriminada dos condenados em navios era, segundo o pensamento da época, capaz de destruir qualquer moralidade. Desta forma, era de extrema necessidade que as prisões fossem esvaziadas novamente.
Não havia qualquer preocupação com a pessoa cuja liberdade fora tomada, mas tão somente com o contingente populacional carcerário. Essa lógica apenas é, e era, apta a conceber o problema da punição de uma única forma: o que fazer com o excedente prisional?
Isso fez com que a administração da lei penal do século XVIII entrasse em crise, vindo à tona discursos que reivindicavam a pena capital e a de deportação como solução para essa questão.
Por não estar mais na moda, a pena capital foi descartada. Em 1786, a deportação foi retomada pelo governo. A Austrália seria o novo destino das deportações:
“As condições entre os novos colonos australianos eram muito ruins no primeiro ano, e a taxa de mortalidade, elevada. Eles dependiam da Inglaterra para conseguir comida, e os contratados preferiam embarcar as mercadorias mais caras para vender para os funcionários e colonos livres do que os artigos baratos subsidiados pelo governo para o consumo da massa” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.162).
Essa era a situação inicial daqueles que habitavam a nascente colônia inglesa.
Neste contexto, a vasta força de trabalho exportada das prisões inglesas foi alocada em obras públicas, ou confiada aos colonos em troca de roupa e comida. Ao terminarem a jornada de trabalho, em razão da escassez da mão de obra, os condenados podiam oferecer-se para empregadores privados. Por causa desta liberdade concedida ao prisioneiro, houve um progresso na agricultura.
Isso acarretou consequências benéficas aos presos que eram deportados para a Austrália, como a suspensão da sentença por bom comportamento, o perdão condicional, e até mesmo o bilhete de partida para a metrópole. Além disto, diante das melhorias, o governado de Pitt “começou a doar terras para os condenados soltos, assim como ferramentas, sementes e alimentos por um certo período” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.163).
Através desta atitude, é possível perceber que a condição, o status de condenado é político, fazendo sentido apenas e tão somente dentro da estrutura que impõe esta marca social.
É neste ponto que podemos afirmar que o ato que decide pela condenação não tem outra função senão colocar a pessoa em estigma através de um papel social específico, qual seja: o de ser criminoso, e por isso ter de realizar a punição específica daquele contexto social e econômico.
Opera-se, desta forma, por meio desse signo jurídico condenado, verdadeiro controle sobre o corpo e o íntimo do ser.
Por isso que é possível concluir pela inutilidade da condenação no começo do desenvolvimento da colônia, visto não haver razão para que pessoas ficassem confinadas entre muro.
Assim, como já mencionado, prezou-se por uma politica de liberdade, invés da sua privação, o que resultou na diminuição da dependência da Inglaterra e no aumento das terras cultivadas.
Não é difícil perceber as oportunidades “para os condenados que sobreviveram às condições péssimas da viagem como deportados e aos maus-tratos de um senhor provado, ou do capaz do serviço publico, eram muito melhores se comparadas com as possibilidades na terra natal” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.164-165).
Essa situação se deu por causa da saturação do mercado de trabalho na metrópole, onde não havia perceptiva além da vulnerabilidade.
Com a adoção desta politica liberal, a Austrália viu sua riqueza e prosperidade crescerem, o que fez com que houvesse o oferecimento para investimento de capital quanto para a chegada de novos colonos. Por prezar pela liberdade, portanto, a sociedade australiana viu-se independente de seus problemas iniciais.
Essa melhora na situação econômico-social da colônia se expressou de forma positiva à classe trabalhadora inglesa, já que as condições de vida, como já mencionado, chagavam a um nível de miséria gritante.
O simbolismo da deportação, portanto, foi aos poucos perdendo o seu caráter de dura punição “tão logo a viagem tornava-se mais familiar e as classes pobres ou “criminosas”, como eram chamadas, começava a contar com amigos e parentes no outro continente” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.168).
Era preciso recuperar o efeito dissuasivo do exílio através da severidade. O secretário colonial Bathurst emitiu o seguinte despacho em 1826 ao governador Arthur:
parece-nos essencial para os fins da Justiça que nenhum meio prático venha a ser negligenciado no sentido de reforçar nas mentes dos criminosos o salutar temor da deportação, que originalmente existiu (...). Recomenda-se, portanto, recorrer a quaisquer medidas que, em conformidade com os poderes legais dos quais se está investido, sejam capazes de impor uma severa disciplina (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.169).
Ora, é possível concluir, assim com os autores, que a proporcionalidade entre culpa e punição deriva de interesses concretos específicos e não por justificativas metafísicas, como a gravidade em abstrato do crime ou o abalo acarretado pela conduta dentro do corpo social.
Contudo, com o decorrer do tempo, uma pequena aristocracia, formada por uma minoria de colonos livres, funcionários do governo, militares, fazendeiros e negociantes, começa a concentrar o poder, buscando impedir que os trabalhadores emancipados se tornem proprietários de terras.
O objetivo principal era que ainda pendurasse a fonte barata de força de trabalha daqueles que eram deportados.
Com isso, “a posição dos emancipados sofreu uma séria mudança (…) agora que a terra não era mais livre eles foram impedidos de adquirir sua propriedade” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.166), o que fez com que muitos deixassem a fazendas e ir para a cidades, onde poderiam encontrar novas perspectivas de trabalho. Em outras palavras, essa medida serviu apenas para impossibilitar a liberdade dos emancipados, porquanto os estagnava à classe trabalhadora de onde vieram.
Além disto, os trabalhadores livres recém-chegados, por necessitar concorrer com a mão de obra barata dos condenados e dos emancipados, inclinaram-se pela abolição da deportação por quererem garantir salários elevados.
Esse cenário fez com que a deportação fosse interrompida em 1852.
A história da deportação inglesa dá-nos um quadro claro e direto dos efeitos da mudança social e das condições econômicas sobre a política criminal. O ponto de partida era a impossibilidade de acomodar o crescimento do número de criminosos nas prisões existentes numa época em que o mercado de trabalho estava saturado. Se os prisioneiros não seriam executados – hipótese não mais aceita pela opinião pública, antes mesmo do que por motivos humanitários -, a única solução para eles era o banimento do país (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.172)
Isso tudo nos leva a concluir que apenas foi possível a pena de deportação por razão da Austrália se encontrar ainda em formação. Diferentemente do que ocorria na Inglaterra, onde já havia a estruturação do poder, esta estava em formação na jovem colônia. No momento em que as necessidades deixaram de existir, os caminhos da oportunidade vão deixando de existir, o que faz com que a deportação seja interrompida.
Neste capítulo, ainda, os autores mostram a utilização da deportação pela França. Em todas as suas tentativas, elas restou inútil, pois esta metrópole exilou pessoas à sociedade já organizadas, em que as necessidades não mais existiam ao ponto de silenciar o preconceito.
3. A falência do confinamento solitário
No capítulo VIII da obra em estudo, os autores analisaram o cárcere do tipo confinamento solitário ou celular – nos Estados Unidos e na Europa, forma de “materialização do sonho benthamiano de arquitetura da instituição penal” (JINKINGS, 2007, p. 112), mas que sofreu mudanças, mesmo falência enquanto forma dominante, em razão de questões ligadas ao mercado de trabalho, à sua não produtividade – não se tratava de trabalho produtivo – e ausência de lucratividade econômica tendo em vista a crescente industrialização exterior que não se interiorizava, ao menos encontrava dificuldades, no cárcere, às organizações de trabalhadores que se opuseram ao trabalho carcerário, que competia com o trabalho livre.
Devido às especificidades do mercado de trabalho nos Estados Unidos, os autores analisam o modelo filadelfiano e auburniano de penitenciária, porquanto a solução dos problemas econômicos daquele são rapidamente resolvidos com este (CIRINO DOS SANTOS, 2012, p. 463); alterando-se as formas no confinamento para um que seja mais produtivo, na medida em que “os capitalistas começaram a submeter às suas exigências as atividades dos detentos” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.184).
Se de um lado o cárcere celular filadelfiano, que produz a perda da consciência de si e compromete a higidez física e mental pelo confinamento total e individual, tem como consequência um trabalho não necessariamente produtivo, mas que implica apenas num processo de subordinação à sociedade burguesa (MELOSSI e PAVARINI, 2010, p. 198-199), ainda com reduzida produtividade (CIRINO DOS SANTOS, 2012, p. 462), de outro era antieconômico, na medida em que, “através da aniquilação física dos condenados, privavam o mercado daquela mão de obra” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.183).
Isto, portanto, que determinou as alterações na penalidade, e não as consequências do confinamento celular como produtor de mudanças de psíquicas relevantes. Reafirma-se algo corrente no texto: questões humanitárias e éticas não produzem alterações na política penal.
Desta forma, o modelo celular filadelfiano foi substituído pelo auburniano – com confinamento noturno e trabalho coletivo, sob o sistema do silêncio, durante o dia nas oficinas, que transformou o cárcere em fábrica e reintroduziu o trabalho produtivo, em razão do estado do mercado de trabalho norte-americano, com crescente demanda de força de trabalho devido ao aumento vertiginoso da industrialização e à existência de terras livres decorrentes de reformas fundiárias, necessidade que não pode ser suprimida pela migração internacional, ademais da mobilidade interna para outras localidades (MELOSSI e PAVARINI, 2010, p. 186), fazendo com que se preferissem as potencialidades de trabalho ao confinamento solitário e em período integral, onde o trabalho era basicamente manufatura – realizado no interior da própria cela, sem qualquer maquinaria disponível; consequentemente, nada rentável – (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p.180-183) e destinada à satisfação, quando muito, das necessidades internas do estabelecimento prisional.
A industrialização determinava uma política penal baseada no trabalho produtivo, que apenas poderia ocorrer com o trabalho coletivo (CIRINO DOS SANTOS, 2012, p. 463) do modelo auburniano, ampliando a exploração do trabalho carcerário e possibilitando a introdução das máquinas no interior do cárcere. No entanto, este entra igualmente em crise:
A redução do trabalho carcerário nas últimas décadas do século XIX foi em grande medida resultante da oposição de trabalhadores livres (...) Onde quer que as organizações da classe trabalhadora fossem bastante forntes para influenciar as políticas estatais, elas foram bem sucedidas na obtenção da abolição completa de todas as formas de trabalho carcerário (Pensilvânia em 1897, por exemplo) (...) ou pelo menos obtendo limitações consideráveis ao trabalho carcerário, como o trabalho sem maquinaria moderna, industrias carcerárias convencionais em vez de modernas, ou trabalho para o governo e não para o livre mercado (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 185).
No que concerne à realidade europeia, que possuía um significativo exército de reserva, era necessária uma forma de punição que fosse reflexo disto. Nesse sentido, o confinamento solitário cumpriria a função de intimidação; isto era apenas uma das razões.
De outro lado, cumpria relevante função no disciplinamento, ademais de ser mais fácil para dirigir. No entanto, como visto acima, “o trabalho carcerário (…) estava destinado a ser improdutivo, e foi, que por toda parte, abandonado” (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 190).
Não por outra razão que os autores concluem que a prisão celular foi um fracasso e que isto refletia “uma mentalidade que, como resultado do excedente populacional, abandona” quaisquer perspectivas de racionalidade (RUSHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 192), para imperar a necessidade de trabalho produtivo e se adequar às demandas do mercado de trabalho.
REFERÊNCIAS
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 5.ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.
JINKINGS, Isabella. Sob o domínio do medo: controle social e criminalização da miséria no neoliberalismo. 2007. Tese de Doutorado – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia (ICC), 2004.
MELOSSI, Dario. PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica – as origens do sistema penitenciário (séculos XVI e XIX). 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006 (Pensamento Criminológico; v. 11).