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Punição e estrutura social: um clássico da Criminologia Crítica

A obra Punição e estrutura social (Punishment and Social Structure), de Rusche e Kirchheimer, se consolidou como clássico da Criminologia Crítica. Apresentamos aqui uma súmula de suas principais ideias.

Objeto: nascimento das prisões – “forma especificamente burguesa de punição, na passagem ao capitalismo”. Menos o cárcere, e mais o “processo de ideologização subjacente à problemática da punição”.

1) A pena não existe. Existem sistemas de punição e práticas penais. O objeto do livro é “a pena em suas manifestações específicas, as causas… as bases… os métodos penais específicos em períodos históricos também específicos”. As práticas penais são determinadas por forças sociais e, sobretudo, econômicas.

2) Os sistemas penais e suas variações estão relacionados às fases do desenvolvimento econômico.Medievo: Direito Criminal para preservação da hierarquia social. Tradição, dependência (social) e religião, ordem. Crime era querela pequena, entre particulares. Sem Estado! Sem poder central. Pena privada: fiança. Aos malfeitores subalternos sem dinheiro para fiança: castigos corporais.Séc. XV: êxodo rural, esgotamento da terra fértil, superpopulação, valorização da terra, excedente de mão-de-obra = miséria, fome, ausência de política social = crime! Crescimento do crime suscita novos métodos de administração da lei penal. Burguesia: propriedade! Leis de preservação da propriedade. Direito ao perdão (pagamento de fiança, suborno, corrupção: enriquecimento de juízes e oficiais). Sem fiança: castigo corporal (severo). “Quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mais duros eram os castigos, para fins de dissuadi-los do crime”. “Execução, banimento, mutilação, marcação a ferro e açoites acabavam (…) por exterminar uma gama de transgressores profissionais, de assassinos e ladrões a vagabundos e ciganos”. Pena de morte: tirar do caminho os indivíduos perigosos. Métodos cada vez mais brutais de execução: morte dolorosa (como exemplo!). Mutilações (o mutilado não conseguiria emprego, voltaria ao crime e acabaria recebendo mais punição). Exílio: para o pobre = galés; para o rico = viagem de estudos, negócios no exterior, serviço diplomático… retorno glorioso!

3) Séc. XVI: mudança gradual e profunda dos métodos de punição. Centros urbanos, mercados, consumo: explorar o trabalho dos prisioneiros. Crescimento demográfico nas cidades = deterioração das condições locais, fome, miséria = retorno ao campo. Trabalho se torna escasso. Altos salários e exigências dos trabalhadores. Capitalistas pedem ajuda ao Estado. Estímulo à taxa de natalidade (“crescei e multiplicai-vos”). Avanço da industrialização, melhora nas condições de trabalho. Dificuldade/concorrência para manter exércitos (soldados) – que são reforçados por criminosos! Leis para controlar as atividades do trabalhador: regula sua vida privada. Efeitos na educação: treinar crianças para a indústria. Início da “ética protestante” (Weber).Mendigos, prostitutas, viúvas, loucos e órfãos – cuidar da pobreza era tarefa da Igreja. Sem trabalho = mendicância. Os confiscos na Igreja levam a um descontrole do “atendimento à pobreza”.Casas de correção! 1ª: Bridewell Royal Hospital, Londres. (Elizabethan Houses of Correction) – 1555. Essência: “combinação de princípios das casas de assistência aos pobres, oficinas de trabalho e instituições penais”. Transformar a força de trabalho dos indesejáveis, tornando-a socialmente útil. Prisioneiros adquiriam hábitos industriosos, treinamento profissional [Símbolo] mercado de trabalho. Inicialmente: mendigos, prostitutas, vagabundos e ladrões; depois: crianças, rebeldes e dependentes dispendiosos.

4) Morus, Utopia: “Seria pouco sábio executar malfeitores, pois seu trabalho é mais lucrativo que sua morte”.Galés: necessidade de remadores (séc. XV). Recrutamento de remadores entre prisioneiros. “Iniciativa calcada em interesses econômicos e não penais”. Punição para falsários, ladrões, mendigos. Objetivo: obter o maior proveito possível da força de trabalho. França, 1664: 10 anos no mínimo (de pena); tolice  libertar os condenados depois de aprenderem e se acostumarem com os remos. Auto-mutilações (para evitar as galés!); resposta do governo: pena de morte para auto-multilações! Deportação: força de trabalho nas colônias e destacamentos militares distantes. Expansão colonial. Escravidão. Deportar condenados deixa de ser vantajoso; e os colonos não querem mais receber bandidos das metrópoles.  Até o séc. XVIII as grades eram apenas o lugar de detenção antes do julgamento. Excepcionalmente ocorriam sentenças de prisão. Casas de correção: exploração do trabalho, treinar reservas para a expansão dos mercados (mercantilismo). Fins do XVIII: orfanato, instituto para cegos, surdos e mudos, asilo para loucos, centro de assistência à infância, hospital e colônia penal, tudo numa só! O objetivo não era a recuperação dos reclusos, mas a exploração do trabalho. Igreja: confinamentos, mosteiros etc.

5) Iluminismo. Montesquieu, Beccaria, Hobbes, Bentham, Voltaire, Marat etc. Leis que reconheçam as distinções e motivações do crime.

6) Howard: viu a miséria expressa nas faces dos prisioneiros. A falta de espaço tornou necessário manter os prisioneiros como gado. Casas de correção no início: limpas, ordeiras e bem administradas; séc. XVIII: estado deplorável. O encarceramento tomou lugar de castigos físicos e pena de morte. A demanda de trabalhadores foi satisfeita e em seguida produziu-se um excedente: superpopulação = desemprego. Expansão da burguesia, ameaçada pelos grupos privilegiados: clama por liberdade, otimismo liberal, livre concorrência (A. Smith). Mercado saturado, trabalhadores mais oprimidos, salários baixos; miséria dos trabalhadores. Crise no sistema social. Mendicância só é crime quando é voluntária: quando não há exército de reserva. Allgemeines Preussiche Landrecht: é assunto de Estado alimentar e sustentar os cidadãos que não conseguem ganhar a própria vida; deveria oportunizar empregos em alguma tarefa adequada às suas forças e habilidades. Resistência, greve, barricadas… luta por direito do trabalho. Massas empobrecidas eram conduzidas ao crime. Delitos contra a propriedade, fins do séc. XVIII: muitos preferiam o roubo à inanição ou ao suicídio. Métodos mais duros de punição: tortura, machado, açoite, fome.

7) Revolução americana pôs fim à deportação de condenados para a América do Norte. Inglaterra, 1776: substituição da deportação por trabalhos pesados. Austrália é citada em 1779, e em 1787 recebe os primeiros 750 condenados. Prisioneiros políticos ocupavam cargos como funcionários, doutores, professores (na Austrália). Crescimento e riqueza da colônia: oportunidades para investimento. Formação de uma aristocracia que não quer se misturar com criminosos (mais de 100 mil enviados, que “desenvolveram um continente”). Michaud, descrição de deportação: “fazer o criminoso pagar pelo mal cometido, abrindo novos caminhos como pioneiro forçado de países a conquistar”. Guiana: clima totalmente inadequado para europeus, cumpria o propósito de eliminar da metrópole as pessoas consideradas perigosas para a sociedade. “A deportação não era considerada no séc. XIX pelos países sem colônias, uma vez que mesmo os que as possuíam também encontravam dificuldades com a população colonial”.

8) Confinamento solitário. Primeira tentativa: Quakers, Filadélfia, 1790. “Os prisioneiros eram isolados em celas individuais, das quais nunca saíam até que seu tempo de condenação expirasse ou até que morressem ou enlouquecessem”. Solidão teria efeito de trazer prisioneiro de volta a Deus. Leitura da Bíblia era única ocupação permitida. Sistema “justo”, pois só assim se atingia a verdadeira privação da liberdade (pena). Sistema de Auburn: confinamento solitário à noite e trabalho coletivo de dia. Eficiência industrial. “As prisões tornaram-se fábricas operosas”. Trabalho (gratuito) e disciplina e bom comportamento = redução/comutação da pena! Punição que produzisse “medo no coração dos miseráveis”. Confinamento = dependência e inutilidade: o pior tormento! Silêncio obrigatório, pátios separados.

9) Prosperidade e aumento de emprego diminuem a ânsia pelo conflito, pela “provocação” e pelo crime. Crítica às penas de curta duração. Liszt: “Não há nada mais imoral e absurdo do que as sentenças curtas de encarceramento para aprendizes do crime”. Reeducação = retorno de forças produtivas para a sociedade. Prins: “Se o crime ocorreu por acaso, como um vento uivante sobre um pântano à noite, a justiça só estará habilitada a responder de forma fortuita. Este não é o caso. O crime tende a concentrar-se num círculo definido que se contrai e se expande sob a influência da prosperidade e da miséria”. Menos grades, mais fiança, liberdade vigiada = declínio da população carcerária.

10) Fiança: “… não devia exceder a capacidade de pagamento do condenado, mas precisava ser superior ao prejuízo causado com seu ato ilegal”. Resultado: prisões lotadas! (pessoas sem capacidade de pagar fiança) – encarceramento por débito! (e não por “pena/punição”). (Pois o Estado estava disposto a liberá-los assim que pagassem). Comercialização do sistema penal.

11) Alemanha, séc. XX. Crise, redução dos salários, desemprego, declínio do nível de vida = crime, prisão. Nos tempos de crescimento econômico as instituições carcerárias haviam sido abandonadas, e as condições carcerárias se deterioraram. Superlotação carcerária em precárias condições. Retorno da pena de morte (anos 1930, Alemanha e Itália).

12) “O período de estabilização trouxe uma queda da criminalidade para o nível do pré-guerra, e a política penal mostrou uma tendência pronunciada de suavização. A crise trouxe uma nova onda de criminalidade em 1932 e uma ligeira severidade nas penas. A conclusão é inegável. Uma vez mais, vemos que a taxa de criminalidade não é afetada pela política penal, mas está intimamente dependente do desenvolvimento econômico”.

13) “O sistema de fianças, o epígono da lei penal capitalista racional, está no seu auge, apesar dos ataques ideológicos que sofre”.


REFERÊNCIAS

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gizlene Neder. 2. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2004.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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