Punição e ideologia: alguns devaneios
Vimos, em alguns textos de nossa coluna, que a criminalização diferencial de pessoas ocorre de acordo com a posição de classe (CIRINO DOS SANTOS, 1981, p. 52), pertencimento étnico, cultural ou territorial (WACQUANT, p. 156, 2014), devido a determinação do modo de punição pelo de produção capitalista (MELOSSI, 2004, p. 124-141).
Notamos, ainda e a despeito de certo caráter provisório e superficial, o papel da punição no período de acumulação primitiva como instrumento de assujeitamento do proletário nascente às condições de circulação e de produção.
Neste espaço, pretende-se traçar apontamentos, mesmo que breves, sobre a relação entre punição e ideologia.
De certo modo e segundo uma leitura de David Garland, Pachukanis, a partir de quem se estrutura uma leitura marxista do fenômeno jurídico e que se transborda para a criminologia crítica, demonstrou que as categorias de valor e de sujeito de direito (basicamente, sujeitos que reúnem em si as condições necessárias para a relação de troca mercantil, igualdade e liberdade, uma subjetividade jurídica, para vender, sobretudo, a si mesmo, mais precisamente sua força de trabalho, no mercado como mercadoria [KASHIURA JR, 2012, p. 131; EDELMAN, 1976, p. 100]) “reproduzem a mentalidade burguesa no processo punitivo” (GARLAND, 1999, p. 141).
Não é por outra razão que Bob Fine afirma que punição e a ideologia são indissociáveis (FINE, 1980, p. 20). Aquela não é um elemento meramente aleatório, mas necessário à estrutural social, enquanto visão jurídica de mundo (KASHIURA JR, 2014, p. 218) que faz com os sujeitos mantenham relação imaginárias com as suas condições reais de existência (ALTHUSSER, 1978, p. 81-82, pois oculta a “realidade da pena [em] sua função de reproduzir o subsistema da justiça penal (correspondente a sua própria clientela) e servir para a produção ideológica e material das relações de desigualdade na sociedade” (BARATTA, 1995, p. 54), o que permite, de certa maneira e na minha perspectiva, a manutenção do modo social em que vivemos e todas as implicações consequentes.
Esses foram elementos introdutórios e assaz simplificados, que demandariam maior estudo e rigor, sobre algo que se pode se ampliar na leitura marxista sobre a punição.
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. ALTHUSSER, Louis. Posições II. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978
BARATTA, Alessandro. Funciones instmentales y simbólicas del derecho penal: una discusión en la perspectiva de la criminología crítica. In: RAMÍREZ, Juan Bustos (org.). PENA Y ESTADO: Función simbólica de la pena. Santiago de Chile: Talleres de Editorial Jurídica ConoSur LTDA., 1995, p. 37-56
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981.
EDELMAN, Bernard, O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito, trad. Soveral Martins e Pires de Carvalho, Coimbra, Centelha, 1976.
FINE, Bob, The Birth of Bourgeois Punishment, p. 20. In: Crime and Social Justice, No. 13, FOCUS ON PRISONS (Summer 1980), p. 19-26.
GARLAND, David. Castigo y sociedade moderna: un estudio de teoría social, p 141 – 1. ed. – Méximo: O siglo xxi editores, S. A., 1999
KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. 1. Ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitária, 2014, p. 218.
KASHIURA JR, Celso Naoto. Duas formas absurdas: uma defesa à especificidade histórica da mercadoria e do sujeito de direito. In: NAVES, Márcio Bilharinho. (Org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: Editora UNICAMP: 2012. p. 117-133
MELOSSI, Dario. A questão penal em O capital. Trad. NAVES, Márcio Bilharinho. In: Margem Esquerda, 4, p. 124-141.
WACQUANT, Loïc. Marginalidade, etnicidade e penalidade na cidade neoliberal: uma cartografia analítica . Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 139-164, dec. 2014. ISSN 1809-4554. Disponível AQUI.