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Punição e Estrutura Social: uma análise (parte III)

Punição e Estrutura Social: uma análise (parte III) – Artigo escrito por Gabriel Martins Furquim e Pedro Henrique de Oliveira Moreira

Analisado o desenvolvimento da política penal à luz das implicações econômicas, percurso que foi da idade média ao período mercantilista e do período de preponderância dos trabalhos forçados e congêneres ao iluminista, iremos analisar, em nosso estudo sobre a obra de RUSCHE e KIRCHHEIMER, o capítulo VI, intitulado “Consequências sociais e penais da revolução industrial”, em coautoria com outro membro do grupo de estudos de criminologia crítica constituído em Campinas (SP).

A questão de fundo na análise dos autores, neste capítulo, é o processo de industrialização, com a consequente disseminação das máquinas em diversos setores – inicialmente da tecelagem de algodão para outras tantas, o que possibilitou alterações significativas: se de uma lado gerou uma superpopulação e um excedente de força de trabalho, de outro lado impactou a política penal.

É, tendo isso presente, que os autores afirmam, já no início, que “a casa de correção surgiu em uma situação na qual as condições do mercado de trabalho eram favoráveis para as classes subalternas” (2004, p. 125), a despeito de sua função disciplinamento das massas, do proletário em formação, situação esta, que neste período da revolução industrial – mais precisamente dadas as condições sociais –, “transformou em direito o que fora ensinado às massas como sendo sua obrigação” (2004, p. 135), isso é, as massas já estariam adaptadas às novas condições, tendo internalizado, assim, os imperativos necessários ao modo de produção capitalista.

De todo modo, neste período, “produziu-se um excedente” (2004, p. 125), ou seja, essas condições favoráveis do mercado de trabalho se invertem com a revolução industrial; passa-se, portanto, de uma escassez – então gerida pelos descolamentos da deportação ou uso do trabalho forçado – para um excesso de mão de obra.

Não à atoa os autores afirmam que “os donos de fábricas não mais necessitavam laçar homens. Pelo contrário, os trabalhadores tinham que sair à procura de emprego (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 126).

Deste forma, não haveria “mais necessidade de medidas coercitivas […] para substituir a ausência de pressão econômica” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 128).

De outra maneira, este excesso de mão de obra constituiu as condições de abandono das penas corporais para regular a manufatura e formar a mão de obra necessária (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 135).

Desta análise, pode dizer que foi as alterações econômicas e o crescimento populacional e de mão de obra, e não as razões humanitárias, que alterou a penalidade, e possibilitou que a fábrica substituísse a casa de correção, como meio de exploração de lucro (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, 134 e 136).

Com o excedente da mão-de-obra, as condições de vida da população se agravava com o transcorrer do século XIX, como apontam os autores, instante em que o “agravamento da luta pela sobrevivência pôs o nível de vida da classe trabalhadora num patamar incrivelmente baixo(…) mais e mais as massas empobrecidas eram conduzidas ao crime.” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 137).

Com efeito, observou-se um aumento nas condenações nos delitos praticados contra a propriedade como, por exemplo, ocorrido em Londres entre os anos de 1821-27, onde as condenações por furto saltaram de 6.629 em 1821 para 9.803 no ano de 1827.

Por outro lado, KIRCHHEIMER e RUSCHE citam uma passagem da obra “The Condition of the Working-Class in England in 1884, de Engels, para demonstrar as condições sociais daquela época:

A necessidade deixa ao trabalhador a escolha entre morrer de fome lentamente, matar a si próprio lentamente, ou tomar o que ele precisa onde encontrar – em bom inglês, roubar. E não é motivo para surpresa que muitos dentre eles prefiram o roubo à inanição ou ao suicídio (ENGELS apud KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 137).

Em suma, estes fatores socioeconômicos foram determinantes, pois influíram de maneira paradigmática na teoria do direito, principalmente no que tange ao direito penal.

Primeiramente, houve uma pressão por parte das classes dirigentes para a volta aos métodos pré-mercantilistas de punição, ou seja, a substituição do costume liberal de encarceramento pelas formas tradicionais de tratamento penal.

Via-se um claro retorno ao retribucionismo, onde a pena teria como fim se “converter em algo que os malfeitores temessem até a medula, algo que os torturasse e os destruísse, como as leis penais de Carlos V.” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2014, p. 139).

A secularização da revolução burguesa de 1789 mostrava-se frágil quanto aos delitos contra o patrimônio, tendo em vista que tal princípio tinha como objetivo afastar a moral do direito.

No entanto, os indivíduos que praticavam crimes patrimoniais eram vistos como inferiores do ponto de vista, passíveis até de serem condenados a pena de prisão perpétua.

Wagnitz, citado por KIRCHHEIMER e RUSCHE, afirmava que a “prisão perpétua para as pessoas miseráveis mostrassem, através de repetidos delitos, que eram muito fracas para afastar a tentação do crime e eram, portanto, incuravelmente doentes do espírito” (WAGNITZ apud KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 139) – nota-se que, ao utilizar-se as expressões “tentação” e “doentes do espírito”, estão fortes traços que relacionam o crime ao pecado, de claros contornos da moral religiosa.

Além do mais, o discurso que procurava atribuir o aumento dos crimes de furto e roubo à brandura da legislação sobre a qual prática judicial estava assentada, frases como “as penas não eram duras o suficiente” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 139) davam o contorno da ideologia dominante. Diante disso, ocorrera uma grande produção de leis ad hoc para intensificar a repressão junto aos crimes de natureza patrimonial.

Tal fenômeno foi demonstrado pelos autores quando analisaram a legislação penal francesa, quando “as leis ad hoc que já haviam intensificado a repressão no tempo do Consulado, especialmente a lei que reintroduz as marcas de ferro aos reincidentes e falsificadores, atingiram o clímax no código de 1810. Esta codificação desviou-se mais ainda do sistema penal liberal da legislação revolucionária.” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 140)

Na Alemanha, o Código Penal bávaro de 1812 produzido pelo penalista Anselm von Feuerbach foi paradigmático, pois, no que diz respeito à técnica legislativa, representou um claro passo progressista, porém, quanto ao sistema de punição, perpetuou o rigor punitivo do período.

Do mesmo modo, durante os debates para a reforma da lei penal prussiana, o anteprojeto de 1830 que tentou eliminar as formas cruéis de punição não foi recepcionado pelo ministro da Justiça, Von Kamptz, que produziu um projeto onde o princípio da intimidação da pena era dominante.

No entanto, as severidades das leis penais da época deixaram intactas as conquistas do iluminismo. Aqui, faz-se necessário a breve reflexão sobre as posições teóricas nas quais os aplicadores do direito se assentavam neste período, ou seja, quais paradigmas filosóficos conformavam o modo de organizar o pensamento e o processo de conhecimento daquela época.

No início do século XIX, o pensamento filosófico dominante na Europa estava fundado no idealismo alemão que tinha como principais representantes Kant e Hegel. Assim sendo, as teorias filosóficas dos dois pensadores mostravam-se mais receptíveis do que as teorias utilitaristas presentes até aquele momento.

A ideia central da filosofia kantiana-hegeliana quanto à punição foi refutar a concepção que ela poderia ser justificada apenas por sua utilidade.

Afastava-se, assim, todos os elementos subjetivos da relação legal entre conduta criminosa e a regra geral do direito penal para ser aplicado ao caso particular.

Tal formulação filosófica encontrou receptividade junto as classes dominantes da época, como demonstram os autores:

A principal demanda da burguesia em relação ao direito penal, a formulação de parâmetros precisos calculáveis de conduta, é preenchida no programa idealista, que está baseado, de um lado, na legalidade a todo custo, e, de outro, em retribuições, nada mais que retribuições (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 144).

Em síntese, a construção teórica de Feuerbach poderia ser vista como uma combinação das formulações utilitaristas das penas e o idealismo kantiano, pois “as penas são previstas visando deter futuros criminosos, mas, uma vez que o crime foi cometido, a punição não tem mais qualquer valor utilitário, e é concebida como conseqüência automática do crime.” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 145)

Por fim, o capítulo VI, da obra em análise, procura delimitar quais foram os novos objetivos e os métodos de administração do sistema penitenciário no período da revolução industrial. Neste ponto, os autores deixam claro o impacto na pesa de prisão do novo momento econômico que se encontrava a Europa:

O cárcere tornou-se a principal forma de punição no mundo ocidental no exato momento em que o fundamento econômico da casa de correção foi destruído pelas mudanças industriais. (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 146)

Elementos como a gravidade do crime e a posição social do condenado, eram levados em consideração no momento da aplicação da pena. Assim, facilitava-se a justificação de que as classes dominantes não poderiam ser punidas com as penas de prisão por serem mais sensíveis e “que havia maior probabilidade de sofrimento por parte de suas famílias” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 147)

Com o crescimento da população carcerária e com a falta de recursos financeiros para construção de novas instalações, houve, neste momento, uma alteração importante na administração do sistema prisional Europeu: precarização do ambiente interno dos presídios.

Em outras palavras, buscava-se deixar o interior das penitenciárias abaixo do padrão de vida das classes subalternas em liberdade. O próprio Marx, em passagem citada por KIRCHHEIMER e RUSCHE, analisou a “invisibilidade” da população carcerária aos olhos da economia política afirmando que

A economia política, portanto, não leva em conta o ocioso, o membro da classe trabalhadora que se encontre excluído do processo de produção. O vilão, o arruaceiro, o mendigo, o desempregado, (...) e o criminoso ocupado em trabalho forçado eram tipos que não existiam para ela, existindo apenas para os olhos do médico, do juiz, do coveiro e do comissário da prisão – como fantasmas fora do seu reino. (MARX apud KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 152).

A existência de um grande exército industrial de reserva, aliado ao crescente número de condenados sem o correspondente aumento dos recursos e a disseminação da maquinaria, alterou significativamente o caráter do trabalho carcerário, que “foi introduzido como uma forma de punição, e não como uma fonte de luro, e os argumentos morais tomaram dianteira como sua justificativa” (KIRCHHEIMER; RUSCHE, 2004, p. 158).


REFERÊNCIAS

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia (ICC), 2004.

VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Disciplina, direito e subjetivação: uma análise de punição e estrutura social, vigiar e punir e cárcere e fábrica. 2010. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Gabriel Martins Furquim

Especialista em Direito Penal. Advogado.

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