Por Henrique Saibro
Não é consenso por parte dos juristas a escolha pela termologia do requisito da segregação preventiva. Alguns doutrinadores[1] preferem resgatar termos do processo civil para o processo penal (como a expressão fumus boni iuris), quase que equiparando a teoria geral processual civilista com a penalista.
Partimos do ideal de que utilizar a expressão “fumaça do bom direito” como requisito para decretação da prisão preventiva é um claro erro de semântica. Seguindo a lógica de LOPES JR. “o delito é a negação do direito, sua antítese”[2], sendo inapropriado discorrer sobre a verossimilhança de um “bom direito” no tocante ao cometimento de um crime, senão em probabilidade de um fato aparentemente punível – o fumus commissi delicti. Nesse sentido, RANGEL[3] afirma que “a fumaça é da prática do crime e não do bom direito”, pois o direito, por si só, “já é bom, incluindo aqui o conceito de direito justo”.
Dada tal ressalva, passemos a entender melhor o pressuposto autorizador da detenção cautelar. O fumus commissi delicti consiste na soma da prova da materialidade de um crime e indícios suficientes de sua autoria delitiva. Aliado à presença do fundamento da segregação cautelar (periculum libertatis), poderá ensejar a prisão preventiva do imputado.
Interessante é a hipótese lançada por BONFIM[4], partindo do pressuposto de que quando evidenciada a provável ocorrência de prescrição abstrata ou virtual da pena, embora o magistrado, em respeito à Súmula 438 do STJ[5], não possa desde logo extinguir a punibilidade do agente, é inapropriado decretar a prisão preventiva do imputado nessas circunstâncias, dada a sua inutilidade instrumental, pois ao final o réu provavelmente terá a sua punibilidade extinta.
Para que o fumus commissi delicti atinja o seu grau de verossimilhança, é necessário, segundo CARNELUTTI, um grau de probabilidade não tão alto quanto o próprio da condenação definitiva, mas mais forte do que o necessário para o indiciamento do acusado, pois, afinal, “no se puede someter el imputado a la captura si no aparece como prabable su culpabilidad”[6]. Nesse mesmo sentido, BADARÓ afirma que entre a ignorância da existência do direito e a certeza plena de sua ocorrência, “há um longo caminho a ser percorrido”.[7]
Exemplificando o acima mencionado, para melhor elucidação do tema, NUCCI[8] assevera que, em um caso de homicídio, consiste prova suficiente da materialidade do delito, a ponto de gerar probabilidade de uma futura condenação, relatos de testemunhas ouvidas no inquérito policial atestando a morte da vítima, bem como a juntada nos autos da certidão de óbito do lesado. Dispensa-se, pois, o laudo necroscópico, que poderá ser posteriormente apresentado.
Aliás, como muito bem observado por DELMANTO JR.[9], se para uma medida cautelar real, como o sequestro de bens (art. 126 do CPP), é exigido “indícios veementes da proveniência ilícita dos bens”, para uma medida cautelar real, que poderá acarretar uma grave prisão, “desponta absolutamente irrazoável e desproporcional exigir-se menos para a imposição de uma medida cautelar pessoal de privação da liberdade”.
Além da presença de probabilidade em certo indivíduo ter perpetrado uma conduta ilícita, os elementos constitutivos do delito, quais sejam, a tipicidade, ilicitude e culpabilidade, devem ter sido analisados e estar presentes quando do decreto segregativo cautelar. Portanto, evidenciada alguma das modalidades previstas no artigo 23 do CP[10], não deverá o magistrado decretar o enclausuramento preventivo do imputado, em total acordo com o artigo 314 do CPP.
Destarte, tendo o réu agredido fisicamente um sujeito, mas havendo indícios de que a sua conduta foi praticada em estado de necessidade[11], mostra-se presente uma provável causa de exclusão de ilicitude, não preenchendo os requisitos do artigo 23 do Estatuto Repressivo, sendo defeso ao magistrado decretar a prisão preventiva do imputado.
Assim sendo, deve o juiz analisar todos os elementos formadores do tipo penal: ação (simples manifestação de vontade); resultado (consequência externa derivada dessa manifestação); nexo causal (imputação física do crime ao autor da ação produtora de resultado); dolo ou culpa (animus agendi capaz de identificar e qualificar a atividade comportamental do agente) e tipicidade (decorrência natural do princípio da reserva legal: nullum crimen nulla poena signe praevia lege)[12].
Entretanto, como bem frisado por DELMANTO JR.[13], o legislador não incluiu a culpabilidade como uma elementar do crime, tanto é que em caso de inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, caput, do Código Penal), há a expressão “é isento de pena”, ao invés de “não há crime”. Portanto, enquanto não sobrevier prova de sua saúde mental, não há impedimento nenhum, ao menos por lei, de ser decretada uma prisão preventiva em detrimento do agente que se enquadre no artigo supramencionado, pois, mesmo inimputável, sua conduta ainda é considerada um crime.
Convém ressaltar que caso haja indícios de que o delito perpetrado pelo imputado tenha sido cometido em sua forma culposa, é dever do juiz não decretar a prisão preventiva, pois esta modalidade segregativa é permitida apenas em crimes dolosos, forte ao inciso I do artigo 313 do CPP.
Importantíssima a ponderação feita por CARNELUTTI[14], para quem a resposta do Estado não é e não deve ser tão rápida como o é o delito. Portanto, caso não haja prova cabal da materialidade criminosa ou indícios suficientes de autoria delitiva, antes da decretação da prisão preventiva, os dois sujeitos citados no exemplo anterior da briga deveriam ser identificados; toda a instrução deveria ser realizada (procedimentos fáceis de dizer, mas difíceis de fazer); mesmo se algum deles confessasse a agressão, existiria a grande probabilidade de o indivíduo apresentar alguma tese de justificação, como, por exemplo, o estado de necessidade. Afinal, conforme aduzido pelo aludido autor, “quem vai devagar, vai bem e vai longe”.
Transportando os ensinamentos do jurista italiano para as medidas cautelares, é criticável a prematuridade de certas prisões preventivas, quando na verdade se deveria aguardar a coleta de provas mais verossímeis a ponto de justificar o fumus commissi delicti, bem como o periculum libertatis. Nesse diapasão, quando houver incerteza por parte do juízo, deve ser aplicada a regra geral do ônus da prova, pois a questão trata de fatos constitutivos da pretensão do acusador, devendo ser indeferido o pedido da tutela cautelar.[15]
Ademais, impende lembrar que o fumus commissi delicti, assim como todo o procedimento cautelar, forte aos argumentos de CALAMANDREI, está fatalmente ligado à emanação do procedimento principal. Ou seja, verificado no processo que os indícios de autoria anteriormente tidos como suficientes ficaram enfraquecidos, a fumaça do crime desaparece, “porque a aparência, na qual ela estava baseada, revela-se ilusória”[16].
Sem embargo, mesmo quando preenchidos todos os requisitos configuradores do fumus commissi delicti, ainda assim não é o suficiente para legitimar a prisão preventiva, pois faltante o fundamento do enclausuramento cautelar: o periculum libertatis – que estudaremos no nosso próximo encontro.
[1] NUCCI afirma que o requisito para decretação de uma prisão preventiva é a probabilidade de condenação “(fumus boni juris, ou seja, ‘fumaça do bom direito’)” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos tribunais. p. 599). Nesse mesmo sentido afirma CAPEZ (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 324) e CALAMANDREI (CALAMANDREI, Piero. Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares. Campinas: Servanda, 2000).
[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 5.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 55. 2v.
[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 11.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 561.
[4] BONFIM, Edilson Mougenot. Reforma do Código de Processo Penal: comentários à lei 12.403, de 4 de maio de 2011: prisão preventiva, medidas cautelares, liberdade provisória e fiança. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 28
[5] “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”.
[6] E prossegue o referido autor: “[…] si un juicio de posibilidad basta para la imputación, no puede bastar para la captura, con la cual el peso del proceso se agrava notablemente sobre las espaldas del imputado” (CARNELUTTI, Francesco. Lecciones Sobre el Proceso Penal. Buenos Aires: Bosch y Cía. Editores, 1950. p. 182. 2v.).
[7] BADARÓ. Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 423.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 602.
[9] DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 168.
[10] Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
[11] Segundo BITENCOURT, o estado de necessidade é um “direito facultativo do indivíduo de escolher entre deixar perecer o seu interesse juridicamente protegido ou sacrificar o interesse antagônico, igualmente tutelado pela ordem jurídica” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 332. 1v.).
[12] Todos os conceitos foram extraídos dos ensinamentos de BITENCOURT (idem. op. cit. p. 275).
[13] DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 164.
[14] CARNELUTTI, Francesco. Como se Faz um Processo. Belo Horizonte: Livraria Líder e Editora, 2010. p. 18-19.
[15] BADARÓ. Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 422.
[16] CALAMANDREI, Piero. Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares. Campinas: Servanda, 2000. p. 101.