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Qualificadoras subjetivas e dolo eventual

Qualificadoras subjetivas e dolo eventual

Em coluna anterior, escrita em coautoria com o grande amigo e advogado Luiz Fernando Falci da Fonseca (acesso aqui), tratamos da incompatibilidade – gramatical e lógica – da tentativa delitiva em dolo eventual, assim como, de maneira breve, apontamos que, por questões de congruência, as circunstâncias qualificadoras subjetivas também são incompatíveis com o dolo eventual.

Nesta coluna volto a escrever sobre a incompatibilidade de circunstâncias qualificadoras subjetivas com o dolo eventual, por uma razão bem específica: são comuns as denúncias de homicídio (tentado ou não) qualificado perpetrado mediante assunção de riscos, por dolo eventual… isso quando não são alternativas quanto ao elemento anímico do agente: homicídio (tentado ou não) qualificado praticado mediante dolo eventual OU direto!

No rito do Tribunal do Júri – todos sabem! – existe um verdadeiro abuso do poder de acusar: em regra, todos os homicídios são denunciados de forma qualificada!

Veja-se a falta de técnica jurídica que se percebe numa imputação alternativa, comumente no rito do júri: são corriqueiros os casos de denúncia por homicídio TENTADO QUALIFICADO com base em dolo EVENTUAL OU direto!

Para início de conversa, a denúncia criminal, ex vi legis (art. 41 do CPP), deve(ria) ser oferecida de forma precisa, expondo o suposto fato delituoso com todas as suas circunstâncias, proporcionando, assim, chances de defesa ao acusado (LOPES JR., 2013) – logo, percebe-se que a intenção destas denúncias é justamente a de impossibilitar a defesa do réu! O acusador, logo, deve(ria) esclarecer o elemento subjetivo que imputa ao agente: ou é dolo direto ou é dolo eventual; os dois não dá!

O dolo eventual, por exemplo, é manifestamente incompatível com o instituto da tentativa. Como questionado noutro espaço (acesso aqui): como é possível o agente tentar algo que ele não deseja (já que no dolo eventual não se tem vontade e não se deseja nada, senão ocorre a aceitação do resultado), se a tentativa pressupõe (art. 14, II, do CP) vontade, desejo, intenção de praticar o delito, que não se consuma somente por questões alheias à vontade do sujeito?

Portanto, a contradição e a incompatibilidade entre o instituto da tentativa e o dolo eventual são flagrantes, desafiando não somente a lógica da língua portuguesa como também a lógica das coisas!

Assim, num primeiro olhar, a imputação acusatória acima narrada já seria manifestamente incongruente e inepta, por afronta ao artigo 41 do CPP. Mas esta ausência de técnica vai muito além.

Não bastasse o ajuizamento de ação penal imputando a prática de um crime tentado por dolo eventual, atribui-se circunstâncias qualificadoras subjetivas ao (suposto) crime não desejado! Esse quadro não é raro de perceber no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais.

A lógica, aqui, é exatamente a mesma da – flagrante – incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual: as qualificadoras subjetivas devem ser planejadas de antemão, desejadas pelo agente, que deveria ter, assim, a vontade de perpetrar o crime; logo, não há que se falar em qualificadora por assunção de risco, assim como que não há que se falar em crime tentado por aceitação do risco (vez que inexiste a prévia intenção finalisticamente orientada do agente de delinquir).

 É o caso, por exemplo, das qualificadoras previstas nos incisos II e IV do §2º do artigo 121 do Código Penal, quais sejam, motivo fútil e recurso que dificultou a defesa do ofendido, in verbis:

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

§2° Se o homicídio é cometido: (...).

II - por motivo fútil; (...). 

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

São qualificadoras que dependem do elemento anímico do agente, do prévio intencionamento, planejamento e desejo [ou motivo] de praticar a infração penal. No caso do motivo fútil, por exemplo, o agente deveria desejar matar alguém por uma razão completamente desproporcional, insignificante, banal, como ceifar a vida de alguém por uma bala.

A qualificadora do inciso IV – o famigerado recurso que dificultou a defesa do ofendido -, de igual maneira, pressupõe que o agente atue de forma intencionada, propositalmente para tornar a vítima indefesa.

Com efeito,  a qualificadora do inciso IV do §2º do artigo 121 do Código Penal pátrio não se caracteriza simplesmente e unicamente pela circunstância da vítima ter encontrado dificuldade de defesa, desvantagem no embate ou falta de previsibilidade em relação à investida do acusado.

Não! É elementar respeitar os limites interpretativos esboçados em lei: deve haver traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso, análogo, que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

Isto é: o agente deve atuar de forma proposital, com a clara intenção de tornar a vítima indefesa ou de diminuir a capacidade de resistência dela. Assim: para a incidência da qualificadora em voga, deve o agente desejar praticar o crime, ainda, com prévia intenção de dificultar ou impossibilitar a defesa do alvo (ofendido), e não perpetrá-lo sem querer, sem desejar diretamente, por assunção de risco, vale dizer, aceitação do resultado.

 Na exposição de motivos ao Código Penal, inclusive, percebe-se que o legislador é claro ao exigir, para a caracterização da qualificadora, que o agente aja de modo insidioso, empregando dissimulação, emboscada, traição ou circunstâncias a essa análogas.

No dia a dia dos egrégios plenários de Júri, em terrae brasilis, não é raro encontrar imputação de tentativa de homicídio doloso, por dolo eventual, qualificado. Não obstante, no âmbito do Tribunal de Justiça Gaúcho, se verificam algumas decisões apontando a incompatibilidade entre o dolo eventual e as qualificadoras subjetivas (embora admitindo – de forma flagrantemente desarrazoada e incongruente –  a tentativa pautada em dolo eventual):

APELAÇÃO CRIME. JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO. IMPRONÚNCIA NA ORIGEM. INCONFORMIDADE MINISTERIAL. PEDIDO DE PRONÚNCIA. ACOLHIMENTO. MATERIALIDADE COMPROVADA. INDÍCIOS DE AUTORIA SUFICIENTES PARA MERA ADMISSIBILIDADE DA ACUSAÇÃO. RELATIVIZAÇÃO DO ART. 155 DO CPP, EM SE TRATANDO DE SENTENÇA DE PRONÚNCIA. QUALIFICADORA. ART. 121, § 2º, IV, DO CP. INADMISSIBILIDADE. INCOMPATIBILIDADE COM O DOLOEVENTUAL. O inciso IV do § 2º do art. 121 do CP não se caracteriza unicamente pela falta de previsibilidade da vítima frente ao ataque perpetrado; na exposição de motivos ao Código Penal, o legislador é claro ao exigir, para a configuração da elementar, que o agente atue de modo insidioso, empregando dissimulação, emboscada, traição ou circunstância a essas análoga. O dolo eventualembora comporte acusação simultânea com outras qualificadoras do delito de homicídio não admite a imputação da circunstância do art. 121, § 2º, IV, do CP, visto que a falta de previsibilidade da vítima, frente ao ataque do réu, é inerente a tal modalidade subjetiva, com a qual, por outro lado, a insídia é incompatível. Precedentes deste Tribunal e do STJ. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70077107126, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Mello Guimarães, Julgado em 12/04/2018)

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO E TENTATIVA DE HOMICÍDIO PRATICADOS NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PRELIMINAR DE NULIDADE POR INOBSERVÂNCIA AO ART. 212, CPP. INOCORRÊNCIA. MÉRITO. DOLO EVENTUAL. QUALIFICADORA DE PERIGO COMUM. MANTIDA. QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. AFASTADA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA QUANTO AO DELITO DO ART. 306 DA LEI 9.503/97. […] 4. Deve ser afastada a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima, por não ser compatível com a acusação de dolo eventual, conforme diretriz do Superior Tribunal de Justiça. […]. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, POR MAIORIA. Relator vencido. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70071762447, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em 14/12/2016)  

O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou a respeito:

HABEAS  CORPUS. IMPETRAÇÃO  EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO  CABÍVEL. UTILIZAÇÃO INDEVIDA DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO AO SISTEMA RECURSAL. NÃO CONHECIMENTO. […] ILEGALIDADE   FLAGRANTE. QUALIFICADORAS.  EMPREGO  DE RECURSO  QUE DIFICULTA  OU IMPOSSIBILITA A DEFESA DA VÍTIMA. MODO DE EXECUÇÃO QUE PRESSUPÕE  O DOLO  DIRETO. MEIO DE QUE POSSA RESULTAR PERIGO COMUM. DESCRIÇÃO QUE SE CONFUNDE COM A DESCRIÇÃO DO DOLO EVENTUAL ATRIBUÍDO AO RÉU. COAÇÃO ILEGAL CARACTERIZADA. CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO.

1. Quando  atua com  dolo  eventual, o agente não quer o resultado lesivo,  não age com a intenção de ofender o bem jurídico tutelado pela  norma penal. O resultado, em razão da sua previsibilidade, apenas lhe é indiferente, residindo aí o desvalor da conduta que fez com o que o legislador equiparasse tal indiferença à própria vontade de obtê-lo.

2. Entretanto,  a mera assunção  do risco de produzir a morte de alguém  não tem o condão de atrair a incidência da qualificadora que agrava  a pena em razão do modo de execução da conduta, já que este não é voltado  para a obtenção do resultado morte, mas para alguma outra finalidade, seja ela lícita ou não.

3. Não é  admissível  que se atribua ao agente tal qualificadora apenas em decorrência da assunção do risco própria da caracterização do dolo eventual, sob pena de se abonar a responsabilização objetiva repudiada no Estado Democrático de Direito.

4. A qualificadora  do perigo comum,  tal como exposta na peça vestibular,  não extrapola o conceito do dolo eventual atribuído ao acusado no caso concreto, revelando-se manifestamente improcedente.

5. Habeas  corpus não  conhecido. Ordem  concedida de ofício para excluir  da decisão de pronúncia as qualificadoras previstas nos incisos   III e IV do § 2º do  artigo 121 do Código Penal, submetendo-se  o réu a novo julgamento pelo Tribunal do Júri pela prática dos crimes de homicídio simples consumado e tentado. (STJ, HC 360617/RR, Quinta Turma, Rel. Ministro JORGE MUSSI, julgado em 21/03/2017)

O que se dirá, então, Senhoras e Senhores, das denúncias oferecidas de maneira alternativa (e, na grande maioria das vezes, genérica e imprecisa também)? E os casos de imputação de homicídio tentado qualificado por dolo eventual OU direto?

A ausência de técnica, a imprecisão, o abuso do exercício do poder acusatório, a inépcia por manifesta contradição, incongruência e ausência de descrição minuciosa dos fatos e todas suas circunstâncias supostamente delitivas, e, principalmente, a dificuldade de defesa do acusado, beiram aos olhos.

Defender-se de OU é para acabar… Quem acusa deve(ria) fazer isto – acusar! –  precisamente, diz a lei (art. 41 do CPP), sob pena de inépcia.

O problema, volto a dizer, é que ninguém respeita a lei. Sequer o “custos legis”, o “guardião da ordem jurídica”!


REFERÊNCIAS

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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