Quando a culpa do crime recai sobre a vítima
Por Daniel Kessler de Oliveira
A popularização das manifestações acerca de questões envolvendo o direito e o processo penal é um fenômeno real e intenso que já fora objeto de diversas análises, inclusive neste Canal.
Os efeitos problemáticos disto são os mais diversos e, normalmente, vêm ligados a uma visão da criminalidade que prega o punitivismo exacerbado e clama por uma resposta penal punitiva célere e extremamente violenta, que, na grande maioria das vezes, se confunde com eficácia.
Todavia, uma outra situação desperta a atenção de quem busca estudar as ciências criminais mais a fundo, que é, justamente, a análise da vítima, de quem suportou a dor causada pelo criminoso.
O que resta difícil de se compreender é como as mesmas vozes que vociferam por uma punição mais dura e rápida, em inúmeras vezes acabam por justificar determinadas situações criminosas pelo papel da vítima, em um total contrassenso, até mesmo por aqueles que, desejosos da execução sumária do criminoso, deveriam estar compadecidos com a pessoa da vítima.
Não se explica, sob nenhum aspecto, uma tentativa criada, na maioria das vezes, pelo próprio senso comum, de avaliar o grau de contribuição que a vítima teve para o resultado criminoso que se desencadeou.
Vivemos exemplos disto, nas formas mais pitorescas e, dada a normalidade de tais práticas, por vezes sequer nos damos conta do que efetivamente estamos fazendo.
Basta sobrevir uma notícia, até mesmo em uma roda de amigos, de alguém que teve seu veículo furtado na rua, para surgir a advertência de alguém no sentido de que não se pode mais deixar veículo estacionado em via pública, não raras vezes acompanhada de um xingamento.
Em outros tipos de crimes, como roubos ao chegar em casa, se justifica pelo fato de que “todos sabem que deve dar uma volta na quadra antes de ingressar em casa”, como se a vítima devesse ser ainda mais penalizada pela sua conduta, que mesmo desatenta, mesmo distraída, é lícita e, plenamente, aceitável.
Muitos se chocaram, quando no ano passado se divulgou uma pesquisa que expressava a opinião da maioria dos brasileiros no sentido de que a mulher, pelo seu comportamento, vestimenta ou modo de ser, contribuía para o estupro que sofria.
Isto pode ter causado espanto em quem não se mostra atento à sociedade em que vive, que cada vez mais se esconde em máscaras de hipocrisia para camuflar todos os preconceitos que guiam os seus, às vezes íntimos, juízos.
Tal análise, além de representar uma total e absurda deturpação dos elementos basilares do tipo penal, por fazer uma perigosa confusão entre o consentimento e uma possível conduta arriscada, avaliou a postura da vítima, sem preocupar-se, com a postura do agressor, que é muito mais problemática e que merece, esta sim, toda a atenção do Estado.
Além disto, concepções desta natureza apenas vêm a revelar o extremo machismo que guia a nossa sociedade e que fingimos não ver, um machismo que entende a mulher como um objeto ou alguém que deve servir ao homem e aos seus instintos, sem perceber que estamos fulminando a liberdade de uma pessoa de ser e agir da forma como ela julga melhor para sí e que não causa prejuízo a ninguém.
Em outro episódio recente, se teve a notícia de que um jovem fora assassinado pela polícia no Rio de Janeiro, pois estava na carona de uma motocicleta carregando uma ferramenta que fora confundida com uma arma de fogo.
Não tardou para que justos protestos ganhassem as redes sociais, de modo que, também não tardiamente, surgiram diversas manifestações justificando a situação.
A justificativa da situação poderia ocorrer sobre aspectos que levassem em conta o papel que a polícia desempenha, o nível de stress do profissional, dentre outras coisas polêmicas, mas que podem render uma análise. Todavia, não é o que acontece quando o debate busca justificar pelo fato do tamanho ou forma da ferramenta, quase no sentido de que, ser pobre, negro e estar com algo na mão em uma motocicleta, está se fazendo merecedor de sofrer uma violenta repressão policial.
Não podemos cair neste contraditório e absurdo contexto de justificar a violência do crime pela conduta daquele que se viu vítima e que, mais do que qualquer um que fique expressando sua opinião e fazendo seus julgamentos, está carregando as consequências diretas do trauma sofrido.
Analisar o contexto delitivo por diversos aspectos é necessário, no entanto, não se pode cair no relativismo e romper o ponto que torne a preocupação com a conduta da vítima maior do que preocupação com a conduta do agente delituoso.
Isto contribui para a vergonha de pessoas em denunciar determinados crimes, bem como esconder determinados detalhes de que como se deram os fatos, sempre pelo receio de serem julgadas ou de receberem críticas pela forma como agiram.
Ademais, não se deve ignorar o discurso que se populariza que faz com que o homicídio, o crime que atinge o bem maior do ser humano, passou a ser banalizado, pois cada vez mais é tratado como um acerto de contas, onde “eles próprios estão se matando.”
Devemos saber que, em um contexto delitivo, existe a vítima e o réu e devemos procurar entender e punir a conduta do agente que praticou o fato criminoso e não daquela que o sofreu.
E, sabendo isto, a vítima deve assim ser compreendida, de modo que, independente do que fez, de como vive, naquele contexto, fora vítima e este é o tratamento que deve receber do Estado.
Justificar a criminalidade na conduta da vítima nos faz maquiar as verdadeiras causas que fomentam a criminalidade e contribui muito mais para uma impunidade do que para uma possível tentativa de alertar as vítimas para os cuidados que necessitam tomar.
Assim, para os defensores da lei e da ordem, o discurso é contraditório e insustentável. O que de igual forma se dá para os defensores do garantismo penal, pois a defesa dos direitos e garantias fundamentais é de todos os indivíduos, tanto do réu como da vítima e a defesa de um não pode interferir na do outro.
Até mesmo porque, como já nos ensinou FERRAJOLI (1997): “o potencial garantista é a radical tutela do polo mais fraco na relação jurídico-penal: a parte ofendida no momento do delito, o réu no momento do processo e o condenado no momento da execução”.
Portanto, assim, devemos compreender o direito penal, como a lei do mais fraco, pois desse modo estaremos realizando o devido enfrentamento das situações e buscando, a necessária, evolução no sentido de pensar às questões criminais.
REFERÊNCIAS
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoria del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1997.