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Quando o Estado é o estuprador da dignidade


Por Ruchester Marreiros Barbosa


Na coluna de hoje trago um caso concreto na qual foi instaurado inquérito policial no ano de 2000 para apurar um caso de atentado violento ao pudor cujo autor era o pai da vítima, que possuía à época, 4 anos de idade. É um caso triste porquanto aquele que deveria garantir uma apuração adequada, o Estado, efetivamente foi mais um estuprador de garantias da vítima.

Deparei-me com os autos pela primeira vez em março de 2016, quase 16 anos após a ocorrência do crime, de cujos indícios fortíssimos da conduta criminosa, ocorrera entre agosto e outubro de 2000.

A mãe começou a suspeitar em razão da alteração do comportamento da criança porque a reproduzir nas brincadeiras com suas bonecas comportamentos sexuais inapropriados para a idade, bem como alterar a forma de interatividade com as crianças e na hora de tomar banho passou a ficar reticente no momento de lavar suas partes íntimas.

Diante do fato, indagou a irmã da vítima, chamemos de “M” de 8 anos de idade, que o pai quando estava com a sua irmã “A” na sala, à noite, não permitia que se aproximasse.

No curso da investigação foram ouvidas diversas testemunhas e realizado um relatório psicossocial por um psicólogo da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima composto de entrevistas com a mãe, vítima e sua irmã.

A mãe se separou do pai e este ao longo da investigação não foi mais encontrado para ser intimado. Naquela ocasião estava em vigor o antigo art. 214 do CP e o art. 224, “c”, do CP, atualmente, ambos revogados pela lei 12.015/09.

Em razão da morosidade do Estado, por diversos fatores que não nos cabe discorrer nesta oportunidade, diversas leis foram aprovadas ao longo do tempo que interferiram na análise da prescrição e da ação penal em crimes desta natureza.

Para começar a prescrição em 2000 tinha como termo inicial o art. 111, I do CP, ou seja, no momento da consumação do crime, mas a Lei nº 12.650, de 2012 alterou seu termo inicial nos crimes contra a dignidade sexual que envolve vítima menor, somente após este completasse 18 anos.

Por se tratar de uma norma penal e que agrava a situação do autor, não poderia retroagir, acarretando o primeiro golpe da proteção que o Estado deveria ter com essas pequenas e ingênuas vítimas.

Em outras palavras, de 2000 à 2016 a prescrição estava em pleno fluxo. Acaso esta regra da prescrição prevista no art. 111, V do CP, com a redação da Lei 12.650/12 estivesse em vigor à época, a prescrição em desfavor do agente e em prol da vítima somente iniciaria sua contagem em 2014.

Ainda que o crime de atentado violento ao pudor continuasse a ser tutelado pela nova redação do art. 217-A, do CP (após a lei 12.015/09) em razão do princípio da continuidade normativo-típica a pena trazida pelo novo diploma é superior que o anterior, influenciando também no lapso temporal da prescrição punitiva pela pena em abstrato.

Alterou-se de uma reclusão de 6 a 10 anos (at. 214, CP) para 8 a 15 anos (art. 217-A). Na primeira pena o lapso prescricional é de 16 anos e na segunda pena, 20 anos, respectivamente por força do art. 109, II e art. 109, I, ambos do CP.

Não esqueçamos também que em 2000 a causa de aumento de pena por este crime ser praticado por ascendente, no caso o pai, tinha como fração “a quarta parte”, que após a lei 11.106/05 alterou o art. 226, II do CP e alterou para uma causa de aumento de “metade”, que a toda evidência também não poderia retroagir.

A regra das ações penais por crimes sexuais antes da lei 12.015/2009 era a privatividade das ações penais. No entanto, quando se tratava de crime praticado por abuso de poder familiar, por força do art. 225, §1º, II do CP, a ação era pública incondicionada.

Neste ponto, quando do advento da lei 12.015/09, o regime das ações penais mudou. A regra passou a ser ação penal pública condicionada a representação e, excepcionalmente, pública incondicionada, por força do art. 225, parágrafo único do CP.

Consequentemente, em razão desta alteração legislativa, as ações penais em curso iniciadas de ofício pelo Estado, por se tratarem de ações penais pública incondicionadas, no caso em tela, continuou a ser pública incondicionada, haja vista que em 2009 a menor possuía 13 anos de idade, consequentemente não houve prejuízo quanto a natureza da ação penal.

No entanto, não devamos esquecer que a prescrição já estava em fluxo pois na época não existia a regra do art. 111, V do CP, incluído somente em 2012.

Em início de 2012 o inquérito policial foi relatado em face da presença da justa causa e de indícios de autoria, principalmente em razão do laudo de exame psicossocial realizado com a família, mas sem a presença do pai, em razão do seu paradeiro incerto e não sabido. O laudo apontava claramente indícios de abuso sexual praticado pelo pai.

Após o relatório o inquérito policial, que ainda não estava sob a minha presidência, retorna com requisição ministerial para oitiva do pai, vítima “A” e da irmã “M”. Evidentemente que se tratava de uma diligência inútil pois o suspeito pode permanecer calado e uma criança de 8 anos na época, após 12 anos, que neste ano contaria com 20 anos, certamente não traria nenhum detalhe que já não tivesse consubstanciado nos autos.

Não olvidemos da Lei 12.234/10, que cria nova contagem para a prescrição retroativa, em face da alteração da redação do art. 110, revogando seu §2º, cuja contagem da prescrição da pretensão punitiva pela prescrição retroativa da pena aplicada em concreto, retroagindo até o recebimento da denúncia e não mais vigorando a regra da retroatividade à data do fato, ou seja, em 2000. No entanto, esta lei também não poderia retroagir para prejudicar o autor. E o fluxo do lapso temporal continuava fluindo em 2012…

Em 2015 a vítima “A” foi encontrada e intimada a prestar declarações. Já estava com 19 anos de idade. Em sua declaração informou que estava casada com 1 filho e não queria mais saber do caso porque não queria remoer fatos já sepultados em sua vida (e pelo próprio Estado diga-se de passagem).

Manifestou o desejo de não prosseguir, só não contaram a ela que a lei não lhe conferia esta alternativa, os autos foram remetidos ao MP os retornou, mantendo a requisição anterior de intimação do pai (já noticiado como em lugar incerto e não sabido) e sua irmã, que contava com 23 anos, mas segundo a vítima “A”, há algum tempo não tinha mais contato com a mesma.

Em 2016 me deparei com os autos nesta realidade, faltando aproximadamente 7 meses para a prescrição pela pena em abstrato de 16 anos.

Ainda que, agora, o MP queira denunciar, o pai será beneficiado pela prescrição da pretensão retroativa, já que apesar da interrupção da prescrição pelo recebimento da denúncia, a retroatividade da pena em concreto será até os fatos em 2000 e não ao recebimento da denúncia, que poderia ser em 2016, por força da irretroatividade de lei 12.234/10, lex gravior.

Acaso condenado este pai a uma pena, provavelmente mínima por ser ele primário e de bons antecedentes, que há época era de uma pena de 6 anos de reclusão, a prescrição que se operaria em 12 anos, ano em que foi elaborado o relatório pelo delegado de polícia da época.

Fica a pergunta: quem é o verdadeiro estuprador desta história?

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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