Quantos “Ygor” há no Brasil? Ou a morte da presunção de inocência
Quantos “Ygor” há no Brasil? Ou a morte da presunção de inocência
Sobre a presunção de inocência, dispõe a Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (…).
Acerca da necessidade do devido processo legal e direito ao contraditório e ampla defesa:
Art. 5º.
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório se a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Reportagem da Folha de São Paulo detalhou a jornada de Ygor Silva de Oliveira, 20 anos, ex-atendente da lanchonete Burger King, rumo à absolvição em 1ª instância em um processo no qual chegou a ficar 73 dias preso em 2017, acusado por crime de roubo. O jornal acompanhou o caso porque amigos se mobilizaram a fim de provar sua inocência quando da prisão do jovem. (Notícia aqui).
O jovem foi preso em casa. A acusação era de participação em um roubo de caminhão de cerveja, no bairro de Pedreira, zona sul de São Paulo, na companhia de outros três homens.
Nada foi encontrado na residência do acusado que demonstrasse que ele era um dos autores do crime. Mesmo assim, foram levados para “averiguação” na delegacia, Ygor e mais três jovens que estavam com ele. Foram “reconhecidos” pelas duas vítimas. O grupo inteiro foi preso.
Ygor foi solto após 73 dias porque seu advogado e um grupo de amigos correram atrás de provas que demonstrassem o absurdo das acusações, bem como mobilizaram a imprensa. No fim das contas, nem a ocorrência do roubo em si ficou provada, pois a defesa conseguiu imagens das câmeras de segurança da alegada via no dia e hora do suposto roubo, e nada foi encontrado.
Inevitável pensar que, se o princípio da presunção de inocência fosse levado em conta, o processo penal seria um dissabor que Ygor e seus amigos enfrentariam em liberdade.
Acerca da presunção de inocência:
A presunção de inocência e o princípio de jurisdicionalidade foram, como explica FERRAJOLI, finalmente, consagrados na Declaração dos Direitos do Homem de 1789. A despeito disso, no fim do século XIX e início do século XX, a presunção de inocência voltou a ser atacada pelo verbo totalitário e pelo fascismo, a ponto de MANZINI chamá-la de ‘estranho e absurdo extraído do empirismo francês’.
(…) No Brasil, a presunção de inocência está expressamente consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição, sendo o princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia). Podemos extrair da presunção de inocência que a formação do convencimento do juiz deve ser construído em contraditório (Fazzalari), orientando-se o processo, portanto, pela estrutura acusatória que impõe a estrutura dialética e mantém o juiz em estado de alheamento (rechaço à figura do juiz inquisidor – com poderes investigatórios/instrutórios – e consagração do juiz de garantias ou garantidor). (LOPES, 2018, p. 59).
Nas palavras do constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos:
Pelo princípio da presunção de inocência, ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (…) Se esse enunciado fosse respeitado, na grandiosidade de sua formulação constitucional, estaria liquidada, no Brasil, a contumeliosa prática do ‘denuncismo’, inadmitida, inclusive, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. (…)
A propósito, lembre-se que a presunção de inocência foi uma novidade da Carta de 1988. No passado, ela era extraída do contraditório e da ampla defesa, pois não vinha prevista taxativamente.
Agora, todos são inocentes, exceto se for provado o contrário.
Até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o réu tem o direito público subjetivo de não ostentar o status de condenado.
Trata-se de uma projeção dos princípios do devido processo legal, da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, do contraditório, da ampla defesa, do favor libertatis, do in dubio pro reu e da nulla poena sine culpa.
Somente quando a situação originária do processo for, definitivamente, resolvida é que se poderá inscrever, ou não, o indivíduo no rol dos culpados, porque existe a presunção relativa, ou juris tantum, da não culpabilidade daqueles que figuram como réus nos processos penais condenatórios.
(…) Antes do trânsito em julgado, todos são inocentes. (BULOS, 2014, ps. 713-714).(grifos nossos).
O grande problema de prisões antes do trânsito em julgado é, via de regra, a fragilidade das provas e razões jurídicas apresentadas para sua validação. E, mesmo que ao fim do devido processo legal sejam evidenciadas e provadas a autoria e culpabilidade do réu, a prisão antecipada não deixa de ser uma antecipação da pena.
Prisão antes do trânsito em julgado deveria ser exceção, mas no processo penal à brasileira está virando regra. Segundo dados do CNJ, dos cerca de 800 mil presos no Brasil, 42% ainda aguardam julgamento.
REFERÊNCIAS
BULOS, Uadi Lammêgo. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 8ª ED. São Paulo: Saraiva, 2014.
LOPES JR, Aury. DIREITO PROCESSUAL PENAL. 15ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
PAGNAN, Rogério. Justiça de SP absolve jovem que mobilizou ‘brigada’ de amigos para provar inocência. Publicado em Folha de São Paulo na data de 23/07/2019. Disponível aqui.
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