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Quem é o responsável por acionar o gatilho?

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Numa noite de sábado, dia 28 de novembro de 2015, cinco jovens, com idades entre 16, 18, 20 e 25 anos, amigos de infância, no Estado do Rio de Janeiro/RJ, subúrbio, enquanto retornavam para as suas casas, depois de passarem juntos à tarde no Parque de Madureira, foram vítimas de 111 tiros disparados pelas armas de Policiais Militares, sendo 81 de fuzil e 30 de pistola, segundo noticiaram os jornais, inclusive via internet. Todos os jovens, na circunstância, morreram. Segundo consta, alguns Policiais se encontram presos por homicídio doloso e fraude processual, pois também foi noticiado que estes mesmos Policiais teriam tentado alterar a cena do crime, a fim de encobrir a prática do ato criminoso ou até de justificá-lo (?), se é que se possa falar em qualquer justificativa na espécie.

Dada à dimensão trágica e indefensável do acontecido, aliada a dor estampada nos rostos dos familiares destes jovens, imagens chocantes, as quais circularam pela rede mundial de computadores; na mesma velocidade, passou-se a colocar em pauta, novamente, a urgência da reforma estrutural da Polícia, mormente no que diz com o seu caráter militarizado, haja vista a reprodução de uma visão do cidadão como potencial inimigo a ser combatido, a qual advém desde os tempos do Brasil Colônia, diga-se de passagem.

Entretanto, não é dessa seara, no que diz especificamente com a desmilitarização da polícia que quero falar e refletir, mas, sim, daquela que diz com a responsabilidade de quem é o verdadeiro acionador do gatilho da arma de fogo que matou esses cinco jovens, os quais representam, também, nada mais nada menos do que a realidade brasileira, conforme dados da Anistia Internacional, os quais dão conta de que o Brasil é o país onde mais se mata no mundo, superando muitos países em situação de guerra.

 Segundo a Anistia, em 2012, 56.000 pessoas foram mortas. Destas, 30.000 eram jovens entre 15 a 29 anos de idade e, desse total, 77% eram negros. Também, de acordo com a mesma entidade, a Polícia Militar do Rio de Janeiro tem usado força letal de forma desnecessária, desproporcional e arbitrária, pois entre 2005 e 2014, 5.132 pessoas foram mortas por policiais em serviço na cidade do Rio de Janeiro/RJ. A grande maioria das vítimas era de jovens negros que viviam em favelas.

Não se desconhece, de acordo com Zaffaroni (2012), que a função policial foi inventada para colonizar, mas foi levada às cidades metropolitanas quando se decidiu controlar pela força a violência criada pela concentração urbana, isto é, segundo o autor,

“quando se optou por tratar as massas deslocadas internas, que ainda não podiam se colocar na produção pela escassa acumulação de capital primitivo, da mesma forma que os colonizados eram tratados.”

Daí advindo, então, o gérmen e a cultura autoritária, a qual não nasce e tampouco morre com a ditadura militar, muito pelo contrário. Nesse contexto, sem dúvida, o que nos remonta é a ideia de uma polícia violenta, autoritária e executora de um massacre que se desvela nos números anteriormente informados. Contudo, essa é a superfície apenas do problema, pois no seu mais recôndito esconderijo encontramos é a naturalização por parte da sociedade e a legitimação por meio dos atores jurídicos dessa prática violenta e letal, alimentando, assim, e validando, também, essa cultura referendada às polícias apenas.  

Por essa razão, Zaffaroni (2012) vai nos dizer que o massacre não pode ser levado em consideração se a direção do grupo hegemônico que o impulsiona não conta com o apoio, ou pelo menos com a indiferença da população, e com a convicção das agências executoras, nesse caso, a polícia.

Por isso, também, e nessa senda, cita Orlando Zaccone (2015) o jurista e desembargador Sérgio Verani:

“O aparelho repressivo-policial e o aparelho ideológico-jurídico integram-se harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do Delegado, por meio do discurso do Promotor, por meio do discurso do Juiz. Se as tarefas não estivessem divididas e delimitadas pela atividade funcional, não se saberia qual é a fala de um e qual é a fala de outro – porque todos têm a mesma fala, contínua e permanente.”

Não por menos, Zaccone (2015) vai dar conta de que o uso da força letal se traduz em lógica punitiva recorrente na história do Brasil, desde a colonização até hoje a podemos visualizar, como por meio da intolerância para com o criminoso, definido e escolhido como delinquente, decidindo, assim, o Estado pela difusão de emergências vinculadas ao medo e ao caos, as quais, por meio dessa cultura punitiva, irão produzir e reproduzir de forma incessante a lógica do inimigo. Um ser fabricado em larga escala, conforme Carlos Henrique Aguiar Serra, no prefácio da obra de Zaccone, ‘numa espécie de linha de montagem de longa duração, mas com sinais e códigos contemporâneos, pelo poder punitivo cuja existência, num certo sentido, somente justifica-se por esta essência punitiva que acaba inexoravelmente por despolitizar os conflitos sociais e sacralizar a punição.’

Há um documentário brasileiro, de 1999, chamado Notícias de uma Guerra Particular. Este documentário retrata o cotidiano dos traficantes e moradores da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro/RJ. Resultado de dois anos (1997-1998) de entrevistas com pessoas ligadas ao tráfico de drogas, o documentário traça um paralelo entre as falas dos moradores, dos traficantes e da polícia, dando conta de uma guerra que não é civil, mas, sim, particular. Ao final da sua visualização, o que fica é o sentimento da mais pura banalização da vida, embora, em nome da proteção à vida, de acordo com Zaccone (2015), produzimos os maiores massacres, com a chancela do estado de direito, que se confunde e se mistura com o estado de polícia ao legitimar a expansão do poder punitivo.

Passados, então, mais de 16 anos, a história ainda se reproduz, por isso sugestiona Zaffaroni (2011) o deslocamento da discussão da própria eficácia da proposta de contenção do poder punitivo para a de se saber se os direitos dos cidadãos podem ser diminuídos para individualizar os ‘inimigos’. Mas, dentro desta proposta, nos deixa claro de saída: “Caso se legitime essa ofensa aos direitos de todos os cidadãos, concede-se ao poder a faculdade de estabelecer até que ponto será necessário limitar os direitos para exercer um poder que está em suas próprias mãos. Se isso ocorrer, o Estado de direito terá sido abolido.”

Não quero ser mais responsável pela morte de quem quer que seja, digo não ao patrocínio de uma guerra desumana, cruel e sanguinolenta. Se tiver que lutar realmente por algo, que seja pela manutenção da democracia, do estado de direito e da vida de todos os meus amigos e inimigos, indistintamente.


REFERÊNCIAS

ZACCONE, Orlando. Indignos de vida. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. São Paulo: Saraiva, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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