Quem protege o direito à liberdade dos pobres na Delegacia de Polícia?
Por Ruchester Marreiros Barbosa
A regulamentação deficiente sobre liberdade provisória com flagrante violação a isonomia começa no art. 325, §1º, I e sua combinação equivocada com o art. 350, ambos do CPP.
Assim dispõe o art. 325, §1º, I do CPP, com a redação trazida pela lei 12.403/11, in verbis:
“Art. 325. O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder nos seguintes limites:
1º Se assim recomendar a situação econômica do preso, a fiança poderá ser:
I – dispensada, na forma do art. 350 deste Código;”
Assim dispõe o art. 350, também do CPP:
“Art. 350. Nos casos em que couber fiança, o juiz, verificando a situação econômica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória, sujeitando-o às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 deste Código e a outras medidas cautelares, se for o caso.” (redação sem reforma pela lei 12.403/11)
A possibilidade de liberdade provisória sem fiança e vinculada, nos mesmos moldes do art. 327 e 328, ambos do CPP não é novidade no ordenamento, posto que temos esta situação na hipótese prevista no art. 69, parágrafo único da Lei 9.099/95, qual seja a liberdade do autor do fato condicionado somente ao comparecimento aos juizados quando intimado.
O legislador por questão de política criminal, somente muda a condição para a concessão do benefício, sendo que neste é a assunção gratuita do compromisso de comparecer aos juizados quando intimado para tal, nos crimes cuja pena máxima for igual ou inferior a 2 anos, sem avaliação da sua situação econômica, atribuindo a responsabilidade nesta hipótese, por razões estruturais ontológicas, haja vista que na fase preliminar, em especial o Termo Circunstanciado, não há previsão de participação do Juiz nos atos do referido Termo, donde se conclui que a liberdade ali concedida, condicionada a assinatura do termo ou encaminhamento imediato aos juizados, é concedida pela autoridade policial daquela forma considerada.
Naquela (hipótese do 325, §1º, I do CPP), o compromisso disposto no art. 327 do CPP é o mesmo de comparecimento quando for intimado pela “autoridade” para os “atos do inquérito ou do processo”. Em outras palavras, quando o art. 350 remete o intérprete para o art. 327 o faz para a observância sobre o compromisso, por uma interpretação sistemático-teleológica, haja vista que o legislador largou mão da técnica (como de regra) e o compromisso de harmonizar os dispositivos, posto que a parte final do 327 do CPP trata da hipótese que quebra de fiança, fazendo supor que uma fiança anteriormente, teria sido concedida, porém o artigo 350 do CPP trata a hipótese de liberdade sem fiança, o que acarreta uma incompatibilidade entre os dois dispositivos, sendo facilmente harmonizado pela doutrina, saltando aos olhos que o art. 350, do CPP quis dá ênfase às obrigações e não ao órgão, conteúdo normativo dos arts 327 e 328, ambos do CPP.
O legislador, como no caso acima aludido, utilizou-se da mesma necessidade de interpretação sistemático-teleológica, quando dispôs no caput do art. 325 do CPP ao definir a “autoridade” que concederá a fiança, criando regras gerais tanto para a autoridade Judiciária quanto a autoridade Policial. A doutrina aponta, pacificamente, que o legislador quando quer tratar de regra genérica para essas duas autoridades, não adjetiva este termo, e quando quer se referir a uma delas em específico, assim o faz, como ocorreu no art. 321 do CPP (juiz) e 322 do CPP (autoridade policial).
No entanto, a lei 12.403/11, no bojo das regras gerais sobre fiança dispostas no art. 325, o seu parágrafo primeiro, inciso I, remete o intérprete a leitura do art. 350 do CPP, donde se encontra regra destinada ao juiz, gerando a vexata quaestio, devendo-se invocar, a interpretação sistemático-teleológica utilizada da mesma forma que faz a doutrina para conciliar os artigos 350, 327 e 328, todos do CPP.
Quando o legislador no inciso I do § 1º do art. 325 remeteu ao artigo 350, ambos do CPP não seria para designar a autoridade que, nestes casos, teria atribuição para dispensar a fiança, pois assim já o teria feito no art. 325 do CPP, mas sim para sinalizar a condição e o procedimento para a dispensa, em especial, aos verdadeiramente pobres e miseráveis, para não se ter, o caso hipotético, de dispensa de fiança para uma pessoa abastada.
Neste sentido, André Nicolitt, in O NOVO PROCESSO PENAL CAUTELAR A prisão e as medidas cautelares, Ed. Campus Jurídico, Série Atualização Legislativa: 2001, Rio de Janeiro p. 95, sustenta “que a própria autoridade policial poderá dispensar a fiança e colocar o réu (rectius, indiciado) em liberdade. Tal posição encontra amparo, inclusive numa interpretação histórica, já que na lei 1060/50, antiga redação do art. 4º, a autoridade policial atestava pobreza.” (correção nossa de réu para indiciado).
Para adicionar ao escólio do Mestre podemos citar outro dispositivo que permite a autoridade policial aferir a condição econômica dos futuros sujeitos do processo no art. 32 do CPP, in verbis:
Art. 32. Nos crimes de ação privada, o juiz, a requerimento da parte que comprovar a sua pobreza, nomeará advogado para promover a ação penal.
1º Considerar-se-á pobre a pessoa que não puder prover às despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família.
2º Será prova suficiente de pobreza o atestado da autoridade policial em cuja circunscrição residir o ofendido.
Ora, o que o art. 325, §1º faz é permitir que a “autoridade” policial e judicial conceda a liberdade provisória, tendo como parâmetro a pena máxima igual ou inferior a 4 anos, para a autoridade policial, e, acima disso, a autoridade judicial, conjugando estas condições, por ambas as autoridades, com a condição econômica do indiciado ou réu preso, “Se assim recomendar a situação econômica do preso”, criando uma gradação crescente de situações econômicas, ou seja, do mais pobre ao milionário, não havendo nenhuma razão para que em sede de pré-cautela a autoridade policial tenha que punir o miserável, podendo aferir que sua situação econômica seja esta.
Ademais, situação teratológica poderíamos chegar ao permitir que o delegado de polícia o poder, com base na análise da condição econômica do indiciado preso, elevar o valor da fiança a valores compatíveis com ricos e milionários, chegando a valores como de 87.475.000,00 (R$ 874,75 – SM X 100 – art. 325, I, do CPP X 1.000 – art. 325, §1º, III, do CPP); aos pobres (R$ 874,75 – SM, reduzido até 2/3 do mínimo – art. 325§1, II do CPP, chegando ao valor de R$291,58); no entanto, não permitir a liberdade provisória ao miserável, pela dispensa do valor (art. 325, §1, I do CPP), mas vinculado ao comparecimento, conforme preceituam os arts. 327 e 328 do CPP.
Restringir esta última, a somente ao juiz, é realmente uma discrepância jurídica e um movimento contrário ao ideal libertário das reformas, que vêm para dar efetividade a prisão como exceção, previsto como princípio Constitucionalmente garantido no art. 5º da Magna Carta.
A análise da condição de pobreza pelo delegado de polícia em sede de inquérito policial, além das previsões legislativas não é novidade no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, in verbis:
A demonstração do estado de miserabilidade pode resultar de quaisquer outros meios probatórios idôneos, além do atestado de pobreza fornecido por autoridade policial competente. (STF – HC 72.328 – Rel. Min. Celso de Mello – DJe 11.12.2009 – p. 29)
No mesmo sentido, também o STJ:
Violência presumida. Ação pública condicionada à representação, que foi devidamente oferecida pelas famílias das vítimas. Condição de miserabilidade. Atestado dispensável. Ilegitimidade do Parquet. Falta de interesse de agir. Inocorrência. Inquérito policial. Ausência de vícios. Peça meramente informativa. Caracterização da natureza hedionda do delito. Ilegalidade não demonstrada de pronto. Impropriedade do meio eleito. Crime hediondo, ainda que cometido com violência presumida. Precedentes. Para caracterizar a hipótese de ação pública condicionada à representação, a miserabilidade pode ser aferida pela simples análise das condições de vida da vítima e representantes, não sendo indispensável o atestado de pobreza. Precedente. Omissis. Precedentes do STF e desta Corte. (STJ – HC 24.473 – MS – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJU 10.03.2003)
Em outros Tribunais:
Não se exige formalidades no ato de representação à autoridade policial para que se investigue crime em que tal condição é exigida por lei. Prejudicial afastada. 2- Demonstrada por meio de atestado de pobreza subscrito pelo delegado da área e firmado perante três testemunhas, é o Ministério Publico o titular da ação penal. Prejudicial afastada. 3- Configurada a continuidade delitiva, conta-se o prazo decadencial para a representação da ofendida após a consumação do ultimo ato apontado como criminoso. Prejudicial afastada. 4- Tendo a vitima contraído união estável com terceiro no curso da ação penal ainda não transitado em julgado, há a necessidade de que esta demonstre o seu desejo de ver continuar a ação penal em curso, pois vigorava à época do fato o artigo 107, VII, do CP. A sua falta acarreta a extinção da punibilidade do agente a ser declarada até mesmo ex officio. Precedentes STF. 5- Recurso conhecido e provido. (TJPI – ACr 2008.0001.004172-4 – Rel. Des. Edvaldo Pereira de Moura – DJe 05.11.2009 – p. 9)
Apesar desta discussão se tornar prejudicada em sede de ação penal nos crimes sexuais, com o advento da lei 12.015/09, por tratar os crimes com ação penal pública, no entanto, demonstra que os Tribunais Superiores e Tribunais Estaduais tendem a interpretar que é plenamente possível a análise da condição de pobreza e miserabilidade jurídico-social dos futuros sujeitos processuais na fase pré-processual, bem como noticia a forma com que é possível na fase do inquérito policial, e com isso, do auto de prisão em flagrante, deduzir-se a condição de miserável, como por exemplo, pela simples condição do mesmo ser domiciliado em favelas, comunidade pobres, e pela mesma razão, o morador de rua, e neste sentido, trago a baila mais uma decisão para sacramentar o entendimento supra:
(….) Em crimes contras os costumes, a representação da vítima não exige forma sacramental, sendo suficiente, para deduzir pela vontade da vítima em ver o agressor processado, sua ida à delegacia, narrando os fatos e registrando ocorrência policial contra o alegado abuso sexual. Ademais, tratando-se de vítima hipossuficiente, moradora de local humilde, presume-se a situação de pobreza, apta a legitimar a atuação do ministério público na propositura da ação penal, razão pela qual se rejeita as preliminares de decadência e de ilegitimidade do ministério público. Omissis (TJDFT – ACr 20050910151269 – (521285) – Rel. Des. Roberval Casemiro Belinati – DJe 26.07.2011 – p. 204)
Esta questão jurídica e de proteção ao poder punitivo do Estado não passou despercebido pelo 1º Encontro de Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, que sugere este esta interpretação, conforme o enunciado 6, in verbis:
“O delegado de polícia poderá, mediante decisão fundamentada, dispensar a fiança do preso, para não recolhimento ao cárcere do indiciado pobre”
Desta forma, é forçoso concluir que por uma simples interpretação sistêmica dos dispositivos supra mencionados e teleológica com o sentido da prisão como exceção conferido pela constituição e efetivado pela lei 12.403/11, que o delegado de polícia não só pode como tem o dever de conceder liberdade provisória ao hipossuficiente economicamente, não obstante, e absurdamente, data maxima venia, ser majoritário na doutrina posicionamento no sentido contrário.