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Quem resiste ao canto das sereias? Sobre limites e arbitrariedades

Por Ruchester Marreiros Barbosa

Já escrevi em outra coluna sobre quem defende os pobres na delegacia, tecendo minha visão sobre a liberdade provisória sem fiança por dispensa em razão da pobreza e vinculada pelo compromisso disposto nos arts. 327 e 328 do CPP pelo delegado de polícia na sua detenção por agentes da autoridade ou por particulares, realizando uma interpretação interpretação sistêmico-teleológica. Nesta coluna trarei mais argumentos, agora sobre o enfoque de uma interpretação prospectiva do garantismo penal plenamente viável pelo Delegado de Polícia.

A interpretação das normas infraconstitucionais se faz necessária à luz da Constituição da República, in casu, pelos princípios como garantidores das liberdade públicas, que vêm esculpidos no art. 5º da Carta Política de 1988, pela razão de que os princípios constitucionais são normas dotadas de grande abstração e baixa densidade normativa, que corporificam os mais autos valores de um sistema jurídico. São princípios que retratam verdadeiras normas de grande abstração axiológica e que demandam uma atividade de interpretação pelo delegado de polícia, que deve apresentar uma atividade construtiva (princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da cidadania, princípio da solidariedade etc.).

Não podemos mais aceitar uma interpretação retrospectiva e nos transformar em meros exegetas repetidores de interpretações eivadas de conteúdo autoritário e fascista, que banham sobremaneira nosso atual Código de Processo Penal. Devemos, sim, analisar o atual diploma com uma interpretação prospectiva, que valoriza a vontade da Constituição, um significado sempre atual, sempre arejado do sistema constitucional e convencional.

Isso é o que a doutrina denomina de mutação constitucional, que consiste em um mecanismo de reforma informal da Carta Magna, que nada mais é do que o processo hermenêutico de adaptação da CRFB, conforme a realidade social de cada “época” sem modificar o seu texto. Essa proposta é muito usada nos EUA, e que começou a ser utilizada pelo Supremo Tribunal Federal. Exemplo disso é a nova releitura do princípio da igualdade que passou a ser entendido como tratar desigualmente os desiguais na medida da sua desigualdade.

Através dessa forma de interpretação que podermos dar eficácia às normas constitucionais, permitindo um equilíbrio entre estas e as normas infraconstitucionais. Acerca deste equilíbrio se preocupa a teoria do Garantismo Penal, criada por Luigi Ferrajoli, trazida pela sua famosa obra, Direito e Razão. Esta traz em seu bojo a idéia de assegurar proteção àquele que se encontre em situação de debilidade. Nesse sentido, todo aquele que se encontrar em situação de inferioridade deverá ter assegurada a máxima garantia, prevista em sede constitucional.

O Garantismo penal não se preocupa com o mero legalismo, formalismo ou processualismo, antes disso, cuida de tutelar os direitos fundamentais da vida, liberdades pessoais, civis e políticas, na senda dos direitos individuais e coletivos. Mas, principalmente na tutela dos direitos fundamentais.

Neste escólio nos ensina Rubens Casara, em sua obra Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, que o modelo garantista sozinho não poderia se fazer suficiente, eis que demanda “uma reestruturação do sistema penal, de forma que a legalidade processual não mais potencialize a seletividade ou propicie o surgimento das cifras ocultas”. Cumpre ressaltar que o processo penal é uma resposta à exigência de racionalidade para efetivar o direito material, “portanto, só se justifica enquanto garantia da razão”.

Ainda sobre esse contexto hermenêutico afirma Rubens Casara, em artigo sobre Interpretação Retrospectiva, Constituição e Processo Penal, publicado na Revista da EMERJ, v. 6, nº22, 2003, p. 202, in verbis:

“Para alcançar a função transformadora pretendida com a interpretação prospectiva, vale repetir, é necessário reconhecer a perda de densidade das normas jurídicas. No lugar de regras monolíticas, assumem relevância as diretrizes (princípios) a serem seguidas. Estas, por sua vez, devem ceder diante das particularidades do caso concreto. Aliás, não é raro que as diretrizes sejam, em abstrato, antinômicas entre si. Como exemplo, temos as diretrizes da liberdade provisória (princípio da liberdade provisória esculpido no artigo 5.º, inciso LXVI, da Constituição da República) e do artigo 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.072/90. Assim, negando-se a natureza de regra monolítica ao artigo 2.º da Lei dos Crimes Hediondos, entende-se porque, diante do caso concreto, pode ser seguida a diretriz do inciso LXVI do artigo 5.º da Constituição da República.”

Pelas exposições acima é forçoso concluir que seria no mínimo irracional permitir que a lei, diante da gritante análise constitucional, que se faz sobre a dignidade da pessoa humana e o devido processo legal substancial como escopos que regem os princípios libertários não permitir, que o Delegado de Polícia analise a condição econômica quando encontrar pessoas em total condição de hipossuficiência financeira e jurídica.

Por fim, para sacramentar que a interpretação prospectiva se faz realidade no da liberdade provisória com dispensa de fiança pelo delegado, ressaltamos que a Comissão Temporária de Estudo da Reforma do Código de Processo Penal apresentou, em 7 de dezembro de 2010, a redação final do Projeto de Lei do Senado nº 156, de 2009, que reforma o Código de Processo Penal.

E neste sentido, o futuro Código, apesar de continuar pecando sobre as nomenclaturas “autoridade”, “juiz”, “autoridade judicial”, “autoridade policial” e “delegado de polícia”, organizou melhor o instituto da fiança, no Livro III – Das Medidas Cautelares, do Título II – Das Medidas Cautelares Pessoais, Capítulo II – Da fiança.

Neste capítulo próprio a Seção I se destina a criar as disposições preliminares e gerais sobre o instituto que em seu artigo inaugural assim dispõe:

Art. 567. A fiança consiste no arbitramento de determinado valor pela autoridade competente, com vistas a permitir que o preso, após o pagamento e assinatura do termo de compromisso, seja imediatamente posto em liberdade.

Logo depois, ainda na mesma Seção I, assim dispõe sobre as autoridades, ainda que de forma confusa (parece que esta confusão de nomenclaturas não irá acabar nunca), in verbis:

Art. 568. A fiança será requerida ao juiz ou por ele concedida de ofício.

……………………………………………………………………

§4º O delegado de polícia poderá determinar a soltura do preso que, a toda evidência, não tiver condições econômicas mínimas para efetuar o pagamento da fiança, sem prejuízo dos demais compromissos legais da referida medida cautelar, observando-se, ainda, no que couber, o disposto no parágrafo único do art. 573.

Ou seja, o legislador, ainda não soube categorizar as autoridades para efeitos de fiança, criando uma interpretação, às vezes confusa, ficando os intérpretes à sorte da clareza ou não do dispositivo. A solução só emerge após uma análise garantista e prospectiva.

Alguns dispositivos depois, encontramos o referido dispositivo, art. 573, do CPP, na Seção IIDo valor e forma de pagamento, ipsis literis:

Art. 573. O juiz, verificando ser impossível ao réu prestar a fiança, por motivo de insuficiência econômica, poderá conceder-lhe liberdade provisória, observados todos os demais compromissos do termo de fiança.

Parágrafo único. Para os fins do caput deste artigo, o juiz poderá solicitar documentos ou provas que atestem a condição de insuficiência ou exigir que o afiançado declare formalmente a absoluta falta de recursos para o pagamento da fiança, incorrendo este no crime de falsidade ideológica se inverídica a informação.

Neste caso em específico, o texto original não possuía o §4º, que foi introduzido após as 214 emendas feitas ao texto, ainda no Senado Federal, tendo sido aprovado o texto final, com a introdução do referido parágrafo, deixou claro, desta vez, a utilização da nomenclatura “delegado de polícia”. Ainda assim, percebe-se que ao fazer alusão ao art. 573 do CPP, novamente encontramos a redação do “Juiz” como autoridade para a análise da situação econômica, o que nos remete novamente à interpretação sistemático-teleológica dos dispositivos.

No entanto, o referido dispositivo encontra-se na seção sobre valor e pagamento o que nos leva a concluir que numa interpretação sistêmica, o dispositivo quis se referir aos aspectos procedimentais e não sobre a autoridade competente, que ficou claro nas disposições gerais, donde podemos concluir, da mesma forma com relação ao atual CPP, apesar de não estar tão melhor dividido quanto estará o NCPP.

Comparando-se, portanto, a estrutura do atual CPP com a do PLS 156/09, NCPP, verifica-se que o intuito do sistema é dar eficácia às garantias constitucionais até agora mencionadas, permitindo-se um equilíbrio entra a CRFB/88 e o CPP, pelo garantismo penal, diminuindo as dicotomias do sistema que geram a seletividade punitiva para não penalizar os mais pobres em um verdadeiro sistema de etiquetamento. O erro é epistêmico atual é não rechaçar a carga criminológica do etiquetamento, criando uma situação de tratamento desigual entre pobres e ricos.

Não se está a proteger a figura do pobre ou do rico, mas um sistema que lhes garantam isonomia real na efetivação das liberdades civis,  permitindo-se chegar a conclusão que o Novo Código de Processo Penal, neste ponto, é o resultado, neste diapasão, de uma grande interpretação prospectiva da Carta Magna, refratando nas normas infraconstitucionais o fenômeno da mutação constitucional numa verdadeira eficácia horizontal das garantias às liberdades públicas.

O sistema atual torna a função de prender do delegado de polícia livre para efetiva subsunção da prisão como regra e não exceção. Não precisa esforço para efetivar-se a prisão diante de um código fascista. No entanto, a interpretação à luz do CPP para se garantir a liberdade direitos ao investigado, como a defesa, a liberdade é engessada na lógica da presunção da culpa. Odiosa lógica autoritária que não sobrevive à uma pequena dose de boa vontade de se garantir efetividade dos princípios constitucionais das liberdades públicas.

O delegado de polícia não é órgão de governo ou de política criminal organicista de repressão às cegas. Além da lógica da deusa Themis, o Delegado deve aprender com Odisseu, na mitologia da sereias. O canto advindo do CPP, aliado ao populismo penal que assola nosso sistema da lógica estritamente punitivista e de antecipação de penal, devemos aprender com Odisseu e sua tripulação que conseguiram escapar do encanto da sereias quando retornavam à Itaca, usando de uma estratégia.

Os marinheiros colocaram cera nos ouvidos e Odisseu amarrou-se ao mastro do navio, pois ele queria ouvir o canto das sereias e assim vencê-las. As liberdades públicas são o mastro de democracia, e esta lógica deve surpreender o das sereias que encantam tanto o populismo penal midiático e que sussurram nos ouvidos daqueles que se permitem ver e ouvir os ecos de um regime autoritário que assombram os homens, mesmo com suas maiores virtudes.

Já dizia Montesquieu no Espírito das Leis, Livro décimo primeiro, capítulo IV, p. 167: “Quem, diria! Até a virtude precisa de limites.”, se referindo ao Rei e a teoria do poder divino.

Nosso limite é a Constituição e o sistema Interamericano de Direitos Humanos. Eis nosso mastro a nos amarrar. Aqueles que se negam a se amarrar em limites é porque já se casaram com uma sereia e seus destinos já foram selados, juntamente com pobres coitados que lhe estiverem à frente, perante a lógica da vingança pública e de revanchismo político penal.

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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