A questão criminal (prefácio do livro ‘Abolicionismos e Sociedades de Controle’)
O mundo do Direito é o mundo da retórica. A série de mediações, procedimentos, rituais, representações e jogos de argumentações instaurados pelo que se chama de devido processo legal como corpo de regras da organização estatal é o traço que caracteriza a prática jurídica. Isso se dá pelo fato do Direito Moderno sustentar a utopia de que é possível codificar a conflituosidade política, social e subjetiva por meio da linguagem e do jogo retórico.
Assim, a partir do mito fundador do contrato social que se postula como a justificativa racional e moderna do Estado, a violência como reposta a esta ou aquela situação problemática, que ao ser introduzida no circuito jurídico é codificada como crime, torna-se uma exclusividade do Estado, este ente definido em termos sociopolíticos como monopólio legítimo do uso da força.
Destarte, os envolvidos na situação problemática têm suas vontades sequestradas e, se quiserem um resultado minimante razoável, precisam se dedicar mais à retórica (o conjunto de regras, direitos, argumentações codificadas pela linguagem) do que aos eventos, anseios e expectativas que produziram a situação problemática capturada pelo Estado para a instauração do tribunal. Isso faz do Direito um fim em si mesmo.
Muito diverso de ser uma forma, uma técnica ou um procedimento racional que auxilia nas resoluções de problemas sociais e/ou interpessoais em uma sociedade complexa, ele é apenas um conjunto de regras que se retroalimenta e se auto-justifica. Muito vezes (na maior parte delas, eu diria) introduz o conflito e a violência onde sequer esses fatores existiam. Pensem, por exemplo, na proibição da venda de certas substâncias tornadas ilegais. Onde teríamos apenas operações de compra e venda, temos uma enorme rio de sangue.
A despeito de valores morais ou preferencias político-ideológicas, a proposição do abolicionismo penal pode muito bem ser defendida por meio de uma argumentação pragmática: o Direito, mais especificamente o Direito Penal, não funciona ou, no mínimo, é incapaz de cumprir o que ele próprio postula como justificativa de sua existência.
Tomemos como exemplo a punição direcionada à prevenção geral ou à garantia da integridade física dos cidadãos, ela é regulamente aplicada e os atos que ela diz prevenir seguem sendo praticados. Para se verificar tal afirmação basta observar o que é sistema carcerário hoje ou notar como não é difícil para a Criminologia Crítica mostrar, convocando outros saberes das humanidades como a História, a Sociologia e a Psicologia, a Antropologia, a Crítica da Economia Política, que na verdade o sistema penal funciona, só que em nome de outros interesses não declarados.
Assim, se justifica o eterno ciclo de reformas que vai da criação das penas alternativas à atual crença na capacidade redentora do sistema que se deposita na Justiça Restaurativa. Algo que, como já mostrara Michel Foucault em Vigiar e Punir, apenas reitera e renova a ideia de que o sistema penal é uma realidade incontornável. Mais uma vez se está como cachorro que corre atrás do próprio rabo.
Os textos de Guilherme Pires aqui reunidos adentram nesse jogo de retóricas próprias ao Direito para subvertê-lo. Operador do Direito, ele convoca uma legião de autores estrangeiros ao campo para atacar o Direito Penal buscando uma filiação discursiva não apenas com o abolicionismo penal, mas também com os anarquismos ou com certa maneira de praticar a anarquia.
Partindo dos escritos de Edson Passetti e Louk Hulsman, dentre outros, mostra ao leitor que a lógica penal está muito além e muito aquém do castelo retórico que constitui o mundo jurídico. Se as soluções propostas pelo Direito Penal são naturalizadas de tal maneira que até seus críticos não conseguem escapar à ela, isso se devo ao fato dela estar incrustrada na linguagem corrente e especializada e, mais ainda, na educação de crianças.
Como Guilherme Moreira Pires descobriu em suas leituras, que ele oferece aqui para um virtual leitor, antes do sistema penal, existe toda uma cultura punitiva, uma sociabilidade autoritária que deve ser abolida em nós, em cada um, em nossas relações. Só a abolição que tem um alvo como este é capaz de produzir, nas palavras que Pires toma emprestada do jargão deleuziano, linhas de fuga.
Conheci Guilherme Moreira Pires durante minha estada de quase três anos no Espírito Santo. Desde o primeiro encontro ele se mostrou um entusiasta do abolicionismo penal, esse campo menor da crítica ao Direito e proposição da abolição do Direto Penal, traduzindo esse entusiasmo em uma dedicação frenética à produção de textos como estes aqui reunidos, e à organização de eventos e encontros sempre muito animados.
Foi a partir daí que passei a notar um crescente interesse que uma nova geração de estudantes de Direito alimenta em relação ao abolicionismo penal. Que seus textos reunidos na forma de livro manduquem e ajudem a ampliar esse interesse. E que mesmo nesta ampliação, o abolicionismo penal se mantenha menor, como uma prática discursiva do combate e não seja capturado na retórica do conflito, ainda que essas idas e vindas, sejam contingentes das forças em luta.
A abolição do sistema penal não é uma utopia, um telos orientador que alimenta a crítica na contingência do presente. Como afirma Passetti, o abolicionismo penal é uma prática do presente, um estilo de vida. Por isso a abolição é possível hoje em mim, em você, em quem se dispor à urgência do combate e não se deixar levar pela sedução um tanto piegas da retórica.
REFERÊNCIAS
AUGUSTO, Acácio. Prefácio. Sobre idas e vindas de uma escrita: em busca da abolição possível. In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.