O castigo dentro do castigo: a imposição do RDD a partir da falta grave
O castigo dentro do castigo: a imposição do RDD a partir da falta grave
Na Lei de Execuções Penais, temos como função declarada da pena a ressocialização do condenado, e, por conseguinte, estabelece-se um sistema de prêmios e castigos de acordo com o bom comportamento carcerário.
Ocorre que, o mencionado dispositivo legal se utiliza de diversos termos imprecisos, sem traçar quaisquer limites para a sua aplicação, consistindo em um cheque em branco para a imposição de castigos pelo comportamento desviante. A expressão “falta grave” é um desses exemplos.
O condenado que pratica ato infracional, definido como falta grave, receberá uma punição “dentro” da pena, sanção esta que deverá servir de exemplo aos demais presos, para que não rompam com a paz no presídio. Neste sentido, Nilo Batista (2003):
Há um século atrás, o regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro contemplava, entre outras sanções disciplinares, a “restrição alimentar”, a “imposição de ferros” e a “reclusão na célula”(1). Se na “restrição alimentar” e na “imposição de ferros” assombra-nos a permanência escravista(2), a “reclusão na célula” pareceria uma inútil redundância diante da hegemonia na cominação da pena de prisão celular no Código Penal de 1890. Sim; embora o código republicano previsse quatro espécies de pena privativas da liberdade(3), a prisão celular era cominada à quase totalidade dos crimes e até mesmo a algumas contravenções(4). Perante o regime executório geral da prisão celular, a sanção disciplinar “reclusão na célula” constituiria sobejidão supérflua: embora o pudor dos penitenciaristas lhes tolha por vezes a franqueza, uma sanção disciplinar tem que representar um acréscimo ao sofrimento penal imposto pelo próprio regime, o que se obtém seja pela intensificação do mesmo sofrimento, seja pela agregação de novos sofrimentos. Isso faltaria por completo no condenado a prisão celular ao qual se pretendesse punir disciplinarmente com “reclusão na célula”, que é a essência da prisão celular (grifos aditados).
Como exemplos dentro do sistema penitenciário brasileiro, temos a imposição do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD); certamente, se trata de sanção mais severa dentro do cumprimento da pena, com o fim de reforçar o caráter punitivo da prisão.
A barbaridade do RDD foi alvo de parecer do Relator Especial do Conselho de Direitos Humanos em relação à tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, Juan E. Méndez, de acordo com a resolução 65/205 da Assembleia Geral da ONU. Consta no mencionado relatório:
O relator especial reconhece que o isolamento social viola o disposto no artigo 10, parágrafo 3o do pacto internacional sobre direitos civis e políticos, o qual dispõe que: “o regime penitenciário consistirá num tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e a reabilitação social dos presos.” (resolução da assembleia geral 2200 (xxi), anexo). Períodos longos de isolamento não contribuem para a reabilitação ou ressocialização dos presos (e/cn.4/2006/6/add.4, para. 48). Os efeitos psicológicos e fisiológicos negativos, sejam eles agudos ou latentes, decorrentes do isolamento prolongado representam uma grave dor ou sofrimento mental. Portanto, o relator especial endossa a visão do comitê contra a tortura em seu comentário geral no. 20, segundo o qual regime de isolamento prolongado equivale a atos proibidos pelo artigo 7o do pacto, e consequentemente a um dos atos definidos no artigo 1o ou artigo 16 da convenção. Por estes motivos, o relator especial reitera que, em sua opinião, qualquer imposição de regime de isolamento que exceda 15 dias constitui tortura ou outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante, dependendo das circunstâncias. O relator convida a comunidade internacional a endossar este parâmetro e impor uma proibição absoluta à detenção em regime de isolamento que exceda 15 dias consecutivos. (grifos nossos).
Ademais, quando nos deparamos com a realidade prática no Brasil, não raro, o RDD é aplicado com fulcro na mera suspeita do apenado integrar crime organizado, prescindindo-se ainda de procedimento administrativo prévio, a fim de apurar se há, de fato, participação na célula criminosa ou prática de outra falta grave:
Tribunal de Justiça de Roraima
Processo n° AgExec 0000140008277
Relator: Des. ALMIRO PADILHA
Publicação: DJe 30/10/2015
AGRAVO DE EXECUÇÃO PENAL – TRANSFERÊNCIA DO APENADO A REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO (RDD) – FALTA DE JUSTA CAUSA – INOCORRÊNCIA – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PRÉVIO – PRESCINDÍVEL – CERCEAMENTO DE DEFESA – NÃO CARACTERIZADO – MANUTENÇÃO DO DECISUM – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
1.A inclusão do Apenado em RDD se deu pelo seu envolvimento em organização criminosa instalada dentro da Penitenciária Agrícola, inclusive tido como líder do movimento, fato que, por si só, demonstra indubitavelmente o alto risco à ordem e segurança do estabelecimento penal e da sociedade.
2. Resta consolidado o posicionamento de ser prescindível a instauração prévia de procedimento administrativo em casos excepcionais. Não se trata de negar as garantias constitucionais que acompanham o Apenado, há apenas o adiamento de sua aplicação, diante da necessidade de assegurar a segurança pública no sistema penitenciário (Precedentes).
3.Recurso conhecido e desprovido. (grifos nossos)[3]
Tal regime viola direitos e garantias básicas do ser humano; o isolamento em cela até o limite de 1/6 da pena, sem qualquer contato com meios de comunicação, banho de sol com horário determinado, visitas restringidas, induz, inevitavelmente o preso à loucura. Onde está a tão declarada “ressocialização” do criminoso que a Lei de Execuções penais afirma em sua exposição de motivos?
Sob o viés prático, ainda que o leitor não concorde com as críticas já formuladas à ressocialização, não poderá olvidar que o condenado, após o cumprimento máximo de trinta anos de reclusão, retornará ao convívio em sociedade. É possível imaginar que o isolamento por meses, até mesmo anos do sujeito o devolverá à comunidade apto a tecer as relações sociais, ou estará ainda mais desconexo com a sociedade?
Percebemos, pois, que ainda para aqueles que não concordam com o que aqui escrevemos, a realidade que tangencia a crítica não pode ser deixada de lado. Certamente o indivíduo sairá ainda mais “não sociável”.
Cotejando os ensinamentos de Nilo Batista (2003), concluímos que a pena disciplinar é propositadamente mais severa e repugnante, com o fito de se demonstrar àquela “comunidade” carcerária que as regras impostas devem ser cumpridas, sob pena de se pagar o mal com um mal maior ainda.
Assim sendo, cumpre abordar se a instituição prisional não seria uma sociedade, se não possuiria um poder que dita o que é o certo, o errado, o bem e o mal, se não há uma hierarquia e vigilância constantes a fim de assegurar o controle do grupo dominante; ademais há o uso da linguagem, na composição de conceitos como “sanção”, “disciplina, “Regime Disciplinar Diferenciado” (RDD), sobretudo este último, confeccionado com o fim único de garantir a vitória do controle social. Nas palavras de Salo de CARVALHO (2008, p. 181):
Importante notar, todavia, que as disciplinas, instrumento moderno do poder, estão diametralmente opostas ao regime de legalidade do Estado de Direito, sendo impossível concebe-las no interior de uma estrutura garantista, tanto no plano do ser (eficácia) quanto do dever-ser (validade formal-material).
Os métodos disciplinares são ontologicamente inquisitoriais. As decisões disciplinares no interior das instituições totais são desprovidas de pré-determinações regulamentares e, quando o são, apresentam-se de forma ambígua e lacunar, ampliando o arbítrio do corpo administrativo – como teria de ser, por várias razões, mas sobretudo, porque se trata de um regime totalitário, as ordens não são justificadas nem explicadas. Desta forma, fica claro o porquê da inviabilização de rígido controle da legalidade nos espaços de poder carcerários. (grifos nossos).
A arbitrariedade a que se refere o autor exsurge na Lei de Execuções Penais em diversas passagens; chama a atenção, especificamente, o art. 52 que versa sobre o RDD o e o art. 127 que trata da perda de parte dos dias remidos pela prática de falta grave; todavia, não se sabe ao certo o que consiste em falta grave (conforme já analisado no título I deste trabalho). Os artigos 49 a 51 do referido diploma legal elencam uma série de fatores que se considera como falta grave. Convém analisar alguns exemplos:
Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:
I – incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina;
[…]
IV – provocar acidente de trabalho;
V – descumprir, no regime aberto, as condições impostas;
Art. 51. Comete falta grave o condenado à pena restritiva de direitos que:
I – descumprir, injustificadamente, a restrição imposta;
II – retardar, injustificadamente, o cumprimento da obrigação imposta;
III – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei
De fato, não se sabe o que é “incitar” ou “participar” de movimento que subverte a “ordem” e a “disciplina”, qual ordem seria esta, a quem cabe determinar, com precisão, se o preso provocou o acidente de trabalho ou foi vítima deste, como os demais; por fim, não há especificação do que é “descumprir de forma injustificada a restrição imposta”, tampouco qual o critério que deve ser utilizado para precisar quando o recluso tem uma justificativa para não cumprir ou retardar a adimplência da obrigação. O inciso III do mencionado art. 51 remete ao disposto no artigo 39, que se passa a analisar:
Art. 39. Constituem deveres do condenado:
I – comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;
II – obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se;
III – urbanidade e respeito no trato com os demais condenados;
IV – conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina;
V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;
VI – submissão à sanção disciplinar imposta;
VII – indenização à vitima ou aos seus sucessores;
VIII – indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho;
IX – higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;
X – conservação dos objetos de uso pessoal.
Parágrafo único. Aplica-se ao preso provisório, no que couber, o disposto neste artigo.
Aqui, como no artigo retro analisado, há a imposição de diversos conceitos abertos e imprecisos, o que dificulta sua interpretação e consequente aplicação, pois não se explicita o que se convencionou determinar, por exemplo, como comportamento disciplinado, tampouco o que seria “fiel” cumprimento da sentença, obediência, urbanidade e respeito às pessoas – poder-se-ia, inclusive, afirmar que deixar de cumprimentar alguém constitui falta grave – conduta oposta à subversão e indisciplina; indenização à vítima ou aos seus sucessores – dessume-se que se o recluso não tiver condições financeiras ou não optar pelo trabalho carcerário, incidirá em falta grave – higiene pessoal – essa é a pior de todas – e asseio da cela ou alojamento.
Basta ver a realidade dos presídios no Brasil, que consistem em verdadeiros depósitos de homens, com celas imundas, escuras, superlotadas; não pode exigir o Estado que o preso, circunscrito neste ambiente insalubre, tenha higiene, ou que seja de sua responsabilidade a limpeza da cela.
O pior é que tais conceitos indeterminados permitem toda sorte de interpretação são os requisitos previstos para se determinar a imposição do RDD e a perda de parte dos dias remidos.
É possível afirmar, portanto, que o discurso declarado do Estado, consubstanciado na Carta Magna e concretizado na Lei de Execuções Penais é a ressocialização do indivíduo, é o Estado Democrático de Direito garantista. Trata-se, em verdade, de um discurso perverso, pois na realidade, diante do sistema carcerário brasileiro e da aplicação da pena, visualizamos que o cárcere embrutece o sujeito, prova maior disto são os índices de reincidência.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. A reabilitação da cela surda. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.11, n.n. esp., p. 1-2, out. 2003.
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 181.