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Extirpando velhos vícios: o reconhecimento de pessoas no CPP

Extirpando velhos vícios: o reconhecimento de pessoas no CPP

Seguindo na linha do texto anterior, daremos continuidade à saga de combate aos desrespeitos contra o nosso quase octogenário Código de Processo Penal. Na presente coluna, dentro dos seus limites editorais, será abordado o pernicioso reconhecimento de pessoas, descrito no Capítulo VII, do artigo 226 até o artigo 228 do vetusto diploma.

Basicamente, o legislador foi enxuto na descrição do procedimento que envolve a possibilidade de apontamento de autoria por meio de identificação visual dos sujeitos, mas, isso nunca pode significar abuso e solipsismo, pois representa modalidade de prova que pode ensejar erros de julgamento quando mal, ou mau, utilizada.

Reconhecimento de pessoas

Merece destaque o artigo 226 do CPP que dispõe de forma sintética como a prova será produzida:

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

De destaque, o procedimento não é mandatório, conforme o próprio caput do artigo indica, o procedimento será realizado em caso de necessidade, mas este não é o ponto fulcral. Conquanto as leis habitam confortavelmente o papel, a realidade prática de sua aplicação diverge intensamente.

A iniciar-se pelo procedimento do Inquérito Policial, não são poucas as oportunidades em que é apresentada para a vítima “mugshots” (os registros das pessoas que já foram “fichadas” pelos órgãos públicos de repressão) de possíveis suspeitos, reiterando, assim, para a vítima, que certamente um bandido já fichado estaria reincidindo. Não bastasse isso, esta modalidade de “reconhecimento fotográfico”, como base de prova sequer indiciária, não está descrita na lei, mas possui recepção, inclusive na seara judicial.

Ao avançar para o procedimento judicial, o apego ao desrespeito normativo persiste, visto que nas solenidades em que ocorrem tais solipsismo, não há sequer constrangimento com esses.

Nestas oportunidades, cabe ao representante defensivo pugnar pelo cumprimento legal e apontar na ata da audiência a nulidade absoluta. Apenas como forma de ilustrar, diversas são as possibilidades a serem vivenciadas, desde reconhecimento pessoal em que o réu permanece algemado, passando pela ausência de tomada do depoimento prévio da testemunha ou vítima em que esta aponta as características físicas do suspeito que possa recordar, até a possibilidade, conforme colacionada na jurisprudência em nota, da inserção de pessoas que sequer possuem alguma semelhança com o indivíduo acusado.

Em que pese a seriedade do assunto, já existiram situações em que o humor se fez presente. Durante investigação policial, foi assentado no caderno inquisitorial que a testemunha teria reconhecido estreme de dúvida o Acusado como perpetrador do fato em investigação, na oportunidade a testemunha assinou sobre a foto do suposto perpetrador, retirada do sistema de Consultas Integradas da Secretaria de Segurança, mas, quando da renovação do ato de reconhecimento, agora em Juízo, oportunidade em que colocado o Réu junto de um estagiário e de um servidor daquela vara criminal, restou reconhecido pela testemunha o sempre infortunado estagiário.

Portanto, além de todos os vieses psicológicos possíveis acerca do reconhecimento pessoal (falsas memórias e suas decorrências), o simples descumprimento dos ditames legais exacerba a luta diária daqueles que atuam de forma contramajoritária defesa dos persecutados pelo Estado, visto que o Leviatã sem o devido controle sempre operará em desfavor do indivíduo.


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