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Rede de Intrigas: sensacionalismo, política e processo penal


Por Maurício Sant’Anna dos Reis


Informo que – ante a insuportabilidade advinda das iniquidades do opressivo sistema penal a qual está submetida nossa sociedade, hoje materializada na polarização político/partidária, embora, histórica e notoriamente mais agressiva contra a parcela mais pobre; bem assim ante a total ausência de perspectivas para ou de um mínimo horizonte de melhora – no próximo sábado, ao vivo, em meu canal do youtube darei cabo à minha vida; isso mesmo, suicidar-me-ei ao vivo!

Não, isso não é verdade (ok, a parte do sistema penal opressivo é verdade), contudo, qual seria a reação de quem lesse inadvertidamente esse pequeno trecho desta coluna? Se todos fossem buscar meu canal no próximo sábado no anseio de flagrar meu trágico ocaso, teríamos fenômeno semelhante ao que é o catalizador de Rede de Intrigas (Network, 1976), de Sidney Lumet.

A trama retrata a UBS TV, emissora que amarga a quarta posição geral na audiência americana. Sua estrutura não parece e uma política interna de austeridade é criada na tentativa de sobrevivência e de ampliação do lucro do canal. Nesse contexto o experiente jornalista Howard Beale (Peter Finch, que ganharia um Oscar póstumo por seu papel no filme), tendo em vista a decadente audiência do programa jornalístico que ancora, é recebe o aviso de demissão. Beale então, na primeira oportunidade, ao vivo em rede nacional anuncia o desejo da emissora e em seguida anuncia que em vista de ser o programa tudo que lhe resta na vida, na semana seguinte se matará ao vivo ‘estourando seus miolos’ frente à audiência. As declarações do âncora, causam, num primeiro momento a fúria dos executivos da UBS TV, gerando demissões no alto escalão, contudo, dada a grande audiência resultante de sua manifestação, outro ponto de vista passa a ser explorado.

A par da raiva dos executivos, a gerente de entretenimento da emissora Diana Christensen (interpretação que rendeu o Oscar à Faye Dunaway) vê no fato uma oportunidade de, aproveitando a experiência de Beale e o seu emergente carisma repensar o jornalismo para além de seu dever informativo. Christensen, que tentava sem êxito criar conteúdo que interessasse à audiência da emissora conclui que os antigos telejornais senão mortos, estão fadados ao ocaso e converte o jornalismo da emissora em entretenimento, materializado em um programa de variedades protagonizado por Beale.

O sucesso é imenso. Beale conclama, absorto em uma áurea profética, a indignação contra as instituições e, em especial, contra a própria televisão, o entretenimento e a emissora em que trabalha. A autocrítica, sincera ou não, convence. Aos poucos a UBS TV vai ganhando cada vez mais espaço no mercado e chega a flertar com a liderança na audiência. A informação agora convertida em entretenimento enche os bolsos da emissora. Ainda que Beale difame sua contratante, o que poderia ensejar sua demissão, o lucro vindo dessa performance compensa eventuais prejuízos e ele fica, o quanto lhe é permitido.

Cessando a análise do filme, até mesmo para evitar ‘spoilers’, não vejo dificuldade em comparar a ficção de 1976 com uma atemporal realidade. A conjuntura política e processual penal recente são provas disso (e já explicarei o motivo), todavia um exemplo mais singelo e um pouco mais antigo podem servir de inicial ilustração.

Acredito que pouco depois de formado ouvi a fala de um promotor gaúcho famoso por sua atuação no júri. Naquela ocasião ele comentou sobre uma estratégia de plenário consistente em, ao perceber que uma prova eventualmente poderia ser rechaçada pela defesa ou ser considerada ilícita pelo magistrado ele a vazava para imprensa. Para tanto, redigia um pequena coluna explicando o caso que acompanhava os elementos trazidos, os encaminhando, preferencialmente, na antevéspera do plenário.

Na ânsia pelo furo jornalístico e ante a repercussão natural que os crimes julgados pelo tribunal do júri possuem, os veículos de comunicação – segundo afirmou o promotor com certo regozijo – não titubeavam em publicar as informações, muitas vezes as complementando com alguma entrevista, com o MP e com a família da vítima. No dia plenário o promotor logo de início fazia remissão à matéria – não por acaso, antes do plenário, o jornal estava colocado frente ao possível corpo de jurados e o mesmo promotor informalmente com eles conversava e comentava a “notícia” – frisando a necessidade da condenação (convertida, semanticamente, no ato, em justiça).

Atônita, a defesa pugnaria pela rejeição das informações, uma vez que não constantes dos autos, ou negado o contraditório, ou por se tratar de prova ilícita. Tudo em vão! Isso porque o promotor poderia – e assim fazia – alegar que não se tratava de prova, mas sim de fatos notórios divulgados pela imprensa. Ainda assim, se determinada a supressão da fala atinente ao jornal, inegável que os jurados já estavam psicologicamente contaminados.

A malandragem do promotor (estou repetindo os termos usados na época) em uma só tacada violariam em tese a regra do artigo 479 do CPP e de lambuja os direitos fundamentais do contraditório, da ampla (plena) defesa e da proibição da utilização de provas obtidas por meios ilícitos. Mas isso pouco importa para opinião pública ou mesmo para os jurados do caso, afinal, são leigos, presumidamente não entendem da complexa fenomenologia do processo penal.

Esse caso, ao meu ver, parece atestar a perigosa relação entre imprensa e justiça criminal, hoje catalisadas pelo ingrediente político: qualquer defesa que faça contra o abuso da justiça criminal é encarada, na polarização que se criou, como defesa a um determinado partido, ainda que o alinhamento político ideológico do defensor seja diverso do partido pretensamente defendido. O episódio recente de interceptação telefônica atesta não só o crescente ódio insuflado pela cegueira jurídica causada pela miopia política, mas também a, quem sabe, promíscua relação entre os agentes da justiça criminal e a mídia.

Ao determinar, ao arrepio da Constituição, a interceptação telefônica do palácio do planalto (ao que tudo indica) o julgador federal (não preciso dizer o nome) produziu prova ilícita, imprestável para o processo. Não crível, seguindo o raciocínio, que ao assim agir o juiz não tivesse conhecimento da lei – pelo que se sabe, é inclusive professor de processo penal – ou seja, podemos concluir com certa tranquilidade na precisão da premissa que o julgador deliberadamente produziu prova ilícita. Ato contínuo – e aí se confirma a tese – vazou a informação, imprestável ao julgamento repita-se, para imprensa que alimentou o senso comum com entretenimento fácil e barato.

A atualidade da obra de Lumet, nesse cenário, é assustadora. Substituímos qualquer jornalista ou personagem televisa (subcelebridade ou não) por um juiz simpático aos holofotes e frequentador de programas dominicais de auditório. Espetacularizamos a justiça, incrementando-a com um toque político e vendemos em uma trama de fazer arrepiar House of Cards. Nessa conjuntura, veículos satíricos podem soar mais sérios do que jornalistas experientes e famosos. Nessa era, em “O Sensacionalista” traz análises sobre a conjuntura política e o processo penal mais sóbrios do que as feitas pelas mídias e veículos tradicionais, talvez seja necessário repensar a sua relação com o simulacro de justiça criminal que hoje alcançamos. Senão, podemos abrir mão de uma vez da justiça criminal e criarmos um programa de televisão, ou por ‘streaming’ de julgamentos populares. Não seria totalmente inventivo, talvez os produtores de Black Mirro possam ajudar.

MauricioReis

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