Reflexões penais no Direito Médico
Não se nega a atualidade das discussões que permeiam o Direito – em especial, o Direito Penal – acerca de possíveis responsabilidades imputadas aos profissionais da medicina. Campo fértil para o debate, o Direito Penal Médico assume seu protagonismo ante a visibilidade impressa por mídias sociais e a ampla divulgação de resultados e propostas terapêuticas.
Ao discorrer sobre as ciências médicas, sendo que estas acompanham o desenvolver de toda a humanidade, resta nítida a intersecção com as premissas basilares do Direito Penal na atenção primária aos bens jurídicos, in casu, o bem da vida. A vida representa a magnitude do corpo social e sua proteção demanda a intervenção do Direito Penal como forma de reprovar condutas humanas que atentem contra este bem jurídico. Para tanto, entre outros cadernos de codificações, o Código Penal reserva capítulo especial para a atenção com a vida humana.
Desta forma, ao fomento acadêmico, importa levantar temática inerente ao profissionais da medicina: sua autonomia e suas balizas legais e éticas.
A autonomia do profissional médico
Tema custoso ao profissional da medicina é a recusa do atendimento ao paciente. Ao médico é conferido o direito de recusar o atendimento ao paciente? Se o paciente não desejar o atendimento, ao médico é autorizado não atendê-lo?
Nenhuma lei é específica no sentido de obrigar o médico ao atendimento de um paciente, a não ser que ele esteja balizado por contrato, expresso ou tácito, iniciado por uma prestação de serviços, o que torna esse vínculo uma verdadeira obrigação, que poderá, no entanto, ser extinta pela vontade das partes ou por motivo de força maior. Nos casos de urgência, contudo, reveste-se o médico de menor possibilidade de escusa no atendimento, ante o dever e o poder de alterar o resultado lesivo, consoante o artigo 13, § 2, do Código Penal.
De acordo com Genival Veloso França (2014, p. 93), hoje, todos são unânimes em aceitar o princípio da liberdade relativa, pois a profissão médica, entre outras, traz em si elevados interesses individuais e coletivos, ligados à pessoa humana. Deste modo, nem sempre é absolutamente livre o exercício da profissão médica, pois, além de ser do interesse público essa forma de mister, em face de existir em si o bem-estar de todos e de cada um, ainda é do próprio interesse coletivo que se possam, em certas ocasiões, impor algumas restrições a uma liberdade que se contrapõe à ordem pública e à paz social.
Continua o autor afirmando que mesmo assim, o exercício profissional da medicina constitui-se numa prática livre, e ainda que o médico não atenda um paciente em estado grave, com perigo de vida, não será ele punido em virtude da alegação do não atendimento como profissional.
O que a lei pune, nessas circunstâncias, é a omissão de socorro, pois o texto penal, afastando-se da repressão ao crime, passa a disciplinar coativamente a solidariedade que deve existir entre os homens, numa maneira de assegurar os valores individuais e sociais. Impõe-se essa norma de solidariedade humana não apenas aos médicos, mas a todas as pessoas que possam prestar uma assistência a alguém que se encontre na iminência de sofrer qualquer dano grave (FRANÇA, 2014, p. 94).
Autonomia x Ciência
Em tempos pandêmicos, emergiu a assertiva quanto ao profissional médico dispor de sua autonomia para a prescrição de tratamentos e medicações sem a devida comprovação pela comunidade científica.
Se por um vértice o médico possui livre manifestação da vontade em suas opiniões e caminho terapêutico a ser apresentado ao paciente, contudo, há de se frisar o que dispõe os comandos normativos do seu Conselho de Classe, traduzido em seu Código de Ética Médica.
O capítulo II, inciso II, o qual versa sobre os direitos do médico, dispõe que o médico deve indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.
Na mesma continuidade, o art. 32 converge:
Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
O mesmo Código assim descreve em seu art. 113:
Art. 113. Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente.
Neste caminhar, o Conselho de Classe é receptivo quanto a cientificidade e exigência comprovatória de eficácia de tratamentos médicos. Tem-se que a afronta nas recomendações de organismos internacionais e científicos, que, de forma unânime, se opõem ao uso de certas substâncias como forma de tratamento precoce e contínuo aos pacientes acometidos por SARS-COV-2 (novo coronavírus), podem, em tese, afrontar aos dispositivos do Código de Ética Médica, ensejando responsabilidades inclusive criminais.
Entretanto, o Conselho Federal de Medicina – CFM, através do parecer n. 04/2020, se manifestou no sentido de autorizar, mesmo que não recomendando, que o médico prescreva medicamentos sem a eficácia comprovada cientificamente, desde que respeitada a decisão que deve ser compartilhada – e aceita – pelo paciente. Extrai-se o seguinte trecho do parecer:
Considerar o uso em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de COVID 19, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.
Deste modo, ao que nos parece, o Conselho de Classe, mesmo que de forma pontual e com o intuito de enfrentamento de nova moléstia, blindou os seus profissionais de possíveis responsabilidades legais – inclusive penais – quanto a prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada, afastando a aplicação de normativas dispostas em seu próprio Código de Ética.
Em outro olhar, portanto, ao médico também é resguardo sua autonomia quanto a não prescrição de medicamentos em desacordo com normas científicas e regulatórias, escorado, assim, nas normativas de sua profissão.
Ao profissional da medicina resta, portanto, o compartilhamento de informações e a atenção na relação médico-paciente, com a primazia da vontade entre as partes e a força do consentimento nas relações legais.
Em sendo um tema de grande repercussão e estudo na contemporaneidade, o Direito Médico, em especial sua vertente penal, merece a atenção da academia em auxílio a práxis dos profissionais da medicina.
REFERÊNCIAS
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
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