Reflexões sobre o caso Triplex (parte 2): provas indiretas e presunções judiciais
Reflexões sobre o caso Triplex (parte 2): provas indiretas e presunções judiciais
E é neste cenário extremamente complexo que fora exposto no texto anterior (clique aqui) que se insere a questão das provas indiretas. Junte todos estes elementos com um ordenamento jurídico com sistema processual penal de matriz inquisitorial (COUTINHO, 1998), adicione uma economia fragilizada e uma cultura voltada ao “jeitinho brasileiro” e tenha como resultado um campo gigantesco para a proliferação de mais tendências inquisitoriais, dentre elas o fetiche pela suficiência condenatória das provas indiretas.
A noção de provas indiretas e diretas está intimamente relacionada ao fato probando. De maneira bem didática, diz-se direta aquela prova que aponta diretamente/imediatamente a aquilo que se pretende provar. Por outro lado, diz-se indireta aquela que não aponta diretamente o que se pretende provar, que exige um raciocínio e somente após ele se consegue alcançar elementos capazes de indiciar a ocorrência do fato probando.
Soma-se ao raciocínio exigido na prova indireta a possibilidade de utilização de regras de experiência por parte do magistrado no processo penal. Sem tal interação resta impossível, ainda que absurdo, que se justifique minimamente a utilização de tal modalidade probatória.
A utilização desta categoria de provas decorreu, basicamente, da complexidade das condutas envolvendo a criminalidade de colarinho branco, bem como da profissionalização dos agentes nelas envolvidos.
O Estado, diante do dilema imposto por tais características, partiu, então, ao discurso da “adequação” de garantias processuais como forma de flexibilização à suficiência probatória nestes tipos de crimes sob a justificativa de que o interesse público pela responsabilização criminal de tais indivíduos se sobrepõe às garantias humanas do processo penal democrático (SIMÕES, 2007).
Diga-se de passagem, o agora Min. da Justiça, Sérgio Moro, possui artigo onde utiliza justamente tais argumentos como meio para utilizar provas cada vez mais frágeis para responsabilização penal. Alinhado a este mesmo discurso, o Procurador da República responsável pela “Operação Lava-Jato” também dispõe deste raciocínio em seus livros.
Tais premissas materializam um verdadeiro Direito Penal (lato) de 3ª velocidade como propõe SILVA SÁNCHEZ (2013), que possui como característica principal a limitação de garantias em prol de um eficientismo e de tutela emergencial de fatos da vida. Na verdade, nem mesmo em um sistema com tais características, mas minimamente democrático, consegue-se admitir a dispensa de prova robusta para uma condenação.
O grande problema na utilização exclusiva de provas indiretas para a condenação penal é constitucional e envolve a presunção de inocência. Este princípio funciona como verdadeiro parâmetro de avaliação de prova, determinando os encargos probatórios e o princípio do in dubio pro reo. Partir da aceitação de condenações com base exclusiva em provas indiretas e presunções é inverter, na prática, a presunção de inocência, de maneira a impor ao investigado ou réu o ônus de comprovar ou infirmar as presunções adotadas pelo magistrado.
Inclusive, atentas às possíveis incompatibilidades de um “padrão de tratamento” das questões envolvendo o crime de lavagem de dinheiro e de organização criminosa, a citada Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas previu em seu texto normativo (art. 2º, n. 1) que os países deverão adotar somente os instrumentos que se adequarem ao seus ordenamentos. Esta mesma liberdade consta nas demais normativas e recomendações internacionais citadas.
Antes de mais nada é importante destacar que diversas ordens jurídicas, inclusive a brasileira, admitem a utilização de provas indiretas. O que se quer aqui sopesar é se a utilização única e exclusiva delas para fins de condenação é suficiente para superar a lógica da presunção de inocência constitucionalmente garantida.
Partindo-se desta premissa é imprescindível questionar a possibilidade de se provar algo de forma segura apenas com base em presunções judiciais. Doutrina e jurisprudência tentam elencar requisitos para possibilitar à prova indireta/indiciária maior segurança: a necessidade de pluralidade de indícios; que a ideia deles extraída apontem na mesma direção; que os fatos base do indício sejam suficientemente provados, ou seja, através de provas diretas; a racionalidade e lógica das inferências retiradas do conjunto indiciário; a relação forte entre o fato base e o fato provado através de prova indireta; que o fundamento da sentença expresse o raciocínio utilizado pelo magistrado na interpretação das provas indiciárias (PASTOR ALCOY, 1995).
Entretanto, a simples obediência a tais requisitos não soluciona o problema da utilização apenas de provas indiretas/indiciárias para fins de condenação criminal. A racionalidade e a lógica utilizadas pelo magistrado na tentativa (frustrada) de alcançar a “verdade” dos fatos ainda gera outro problema.
Fundamentar uma condenação penal no regular acontecimento da vida, naquilo que é provável ter acontecido, faz com que se adote uma decisão com fundamento em uma regra geral, sem qualquer concretização, ou seja, deixa-se de tentar demonstrar aquilo que efetivamente ocorreu naquele caso para utilizar premissas e suposições consubstanciadas na regra geral da vida. Neste ponto, é importante lembrar que o magistrado não é funcionário dos órgãos de segurança, mas sim um profissional que deve julgar com base nas provas presentes no processo.
O que se quer demonstrar é que a prova indireta/indiciária é carregada de subjetividade, pois decorre da interpretação do magistrado conforme suas regras de experiência e não cabe ao juiz em um ambiente democrático buscar hipóteses voltadas à condenação, mas sim retirar o que puder dos elementos constantes no processo. Caso assim não se proceda, estaremos diante de um processo completamente desequilibrado, um mero misancene onde não há efetivamente contraditório e ampla defesa e muito menos paridade entre as partes.
Há quem diga que o princípio do livre convencimento motivado e a não tarifação probatória são fundamentos capazes de possibilitar a utilização exclusiva de provas indiretas/indiciárias para fins de condenação. Entretanto, há uma incompreensão do que efetivamente determina tal princípio. O livre convencimento não significa que o magistrado poderá formatar sua convicção a seu bel prazer, mas apenas que ele não está submetido a limitações que o obrigue a valorar diferentemente os tipos de prova (FERRER BELTRAN, 2007).
Não se autoriza, portanto, que o magistrado tome decisões probabilísticas, pois estas são contrárias à robustez exigida constitucionalmente à superação da presunção de inocência. E é isso que ocorre quando se decide com base em provas indiretas/indiciárias, parte-se de noções gerais, uma verdadeira probabilidade de que o fato tenha acontecido, sem que haja na decisão a demonstração concreta do que ocorrera.
O que se necessita deixar firmado e claro é que as provas indiretas/indiciárias possuem no processo penal um caráter subsidiário e não substitutivo da necessidade de robustez probatória para fins de condenação. Portanto, deve ser utilizada com parcimônia e sempre atrelada à elementos diretos da ocorrência do fato.
Ademais, o texto constitucional não traz qualquer diferenciação no grau probatório de certos crimes em relação a outros, o que torna incompreensível que nos casos envolvendo lavagem de dinheiro sejam suficientes provas indiretas para consubstanciar uma condenação.
O que ocorre nestes casos é uma verdadeira deturpação da ordem constitucional, passando da presunção de inocência à presunção de culpabilidade (KHALED JR, 2015). Temos vários outros elementos atrelados a este tipo que podem ser citados neste sentido, além da questão probatória, mas que deixaremos para outras oportunidades.
O que se constata, portanto, é uma verdadeira flexibilização de garantias em razão da macrocriminalidade, de maneira que a presunção de inocência nestes casos possui um peso menor do que em outras modalidades de crime, algo que é inconstitucional.
Dito isto, no próximo escrito, analisaremos detidamente os fundamentos utilizados para condenação do ex-presidente Lula no caso triplex, a partir dos ensinamentos já expostos sobre provas indiretas e presunções judiciais.
REFERÊNCIAS
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, a. 30, n. 30. Curitiba: 1998, p. 163 a 198.
FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007.
KHALED JR, S., ROSA, A. M. da. O standard de prova de Moro e o enfraquecimento das garantias do acusado: uma provocação. Empório do Direito, 2015. Disponível aqui.
PASTOR ALCOY, F. Prueba indicaria e presuncion de inocencia. Valencia: Editorial Práctica de Derecho, S. L., 1995.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
SIMÕES, Euclides Dâmaso. Prova indiciária: contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente. In: Revista Julgar. nº 2. 2007.
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