Reflexões sobre o caso Triplex (parte 4): imparcialidade e fair play processual
Reflexões sobre o caso Triplex (parte 4): imparcialidade e fair play processual
Passado o exame sobre a utilização exclusiva de provas indiretas para condenação no caso triplex. No escrito de hoje analisaremos o mencionado caso sob a ótica do postulado da imparcialidade judicial, ou seja, o objetivo desse texto é verificar se a condução do processo pelo ex- juiz Sérgio Moro – que agora exerce o cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública – foi ou não imparcial à luz do que dispõe a Constituição e o Código de Processo Penal.
De início, vale a pena deixar claro que o escopo do presente texto é tão somente analisar o quesito da imparcialidade no caso triplex. Não iremos aqui fazer conjecturas acerca da suposta existência de um projeto político de poder por parte dos integrantes da operação Lava-Jato ou coisa do gênero. Logo, nos restringiremos a estudar o quesito da imparcialidade a partir dos diálogos vazados.
Partindo dessa premissa, cumpre afirmar que o caso triplex desde o seu nascedouro foi um processo judicial bem atípico. Primeiro em razão da celeridade na qual os atos processuais se sucederam, segundo, pela atuação bastante ativa do ex- juiz Sérgio Moro, que desde o primeiro momento já chamou a atenção de todos aqueles que atuam na seara criminal.
Lenio Streck (2016) foi um dos primeiros juristas a denunciar os desmandos da operação Lava-Jato. Em texto sobre condução coercitiva o autor já asseverava que a utilização da condução coercitiva para forçar o investigado ou réu a participar de interrogatório policial ou judicial era inconstitucional.
Esse entendimento, inclusive, foi posteriormente corroborado em 2019 pelo STF quando decidiu-se que a condução coercitiva pra fins de interrogatório violava o princípio da não autoincriminação e de forma reflexa o princípio da não culpabilidade ou presunção de inocência.
Dito isto, no que tange as oitivas das testemunhas e ao interrogatório do ex-presidente na fase judicial, o que já se observava à época era a atuação preponderante do ex- juiz Sérgio Moro na produção de provas acusatórias.
Não foram raras as situações nas quais o ex- Juiz – em nome da famigerada “verdade real” – buscou provas para condenação. A atuação preponderante e as perguntas feitas por Moro durante o interrogatório do ex-presidente deixa claro que o julgador estava totalmente contaminado pelos elementos produzidos na investigação. Logo, houve clara violação ao que dispõe o art. 212 do CPP, que exige uma atuação complementar/subsidiária do magistrado durante a instrução.
Assim, como não mais adota-se o sistema presidencialista – sistema em que juiz era o ator principal – mas sim o modelo do cross examination, que impõe uma atuação equidistante do julgador, resta óbvio que o atuar de Sérgio Moro foi na contramão do que é exigido pela lei.
A imprensa, inclusive, tratava do caso triplex como se fosse um embate entre Lula e Moro, ou seja, entre Estado-Juiz e Defesa. Assim, o que se percebia era que o Ministério Público possuía um papel secundário apesar de ser o legítimo titular da ação penal.
Todavia, apesar das suspeitas de parcialidade de Moro, o estopim do referido caso se deu através do vazamento de conversas entre o ex- Juiz e os Procuradores da República integrantes da operação Lava- Jato.
Os diálogos divulgados pelo The Intercept confirmou o que desde o início já se suspeitava, ou seja, que havia uma relação bastante íntima entre Moro e os Procuradores da República, que ia além de uma atuação profissional e da cordialidade exigida entre representantes do Poder Público.
As mensagens e áudios vazados são cristalinos no sentido de que existia um conluio para que o ex- presidente fosse condenado pelos delitos de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, apesar da comprovada inexistência de elementos suficientes de prova da prática de corrupção passiva e lavagem de dinheiro por parte de Lula.
Dito isto, questiona-se: há razões suficientes para declaração de nulidade no caso triplex por quebra da imparcialidade na condução do processo? Pois bem. De imediato podemos dizer que sim, já que o conteúdo das mensagens vazadas apontam para uma total ausência de fair play por parte do julgador e do órgão acusador.
Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre Petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram to com receio da história do apto… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua”.
Essa mensagem interceptada de uma conversa entre Deltan Dallagnol (coordenador geral da operação Lava-Jato) e Moro, além de indicar que a acusação não tinha certeza da materialidade do fato e dos indicativos suficientes da autoria de Lula no referido caso, nos mostra que houve uma trama para que houvesse a instauração e recebimento do processo sem a devida solidez probatória para tal.
Prezado, a colega Laura Tessler de vcs é excelente profissional, mas para inquirição em audiência, ela não vai muito bem. Desculpe dizer isso, mas com discrição, tente dar uns conselhos a ela, para o próprio bem dela. Um treinamento faria bem. Favor manter reservada essa mensagem.
Nessa outra mensagem, percebe-se que Moro sugere a troca de Procuradores para inquirição do ex- presidente, o que também revalida o argumento de total contaminação de Moro em relação ao material acusatório.
Em outra conversa, dessa vez entre Moro e o Procurador Federal Santos Lima, Moro sugere que a MPF edite uma nota “esclarecendo as contradições do depoimento (de Lula) com a demais provas”, o que nos indica que o Estado- Juiz ao invés de se portar de forma inerte e equidistante, era na verdade uma segunda acusação.
Nessa esteira, pode-se afirmar que independentemente da ilicitude de tais vazamentos, – até porque o próprio Moro já sinalizou pela veracidade de algumas desses diálogos – nos parece óbvio que a condução do caso triplex desde o seu nascedouro ocorreu em total desacordo com o princípio processual democrático da imparcialidade judicial.
No mais, em relação a possibilidade de utilização das mensagens vazadas como prova da quebra da imparcialidade, pensamos ser totalmente possível tal aproveitamento.
Dito isto, discordamos veementemente do posicionamento do Desembargador João Pedro Gebran Neto, do TRF-4, que em recente decisão no processo do sítio de Atibaia, que Lula figura como réu, entendeu não ser possível o acesso da defesa às provas ilícitas relacionadas a operação “spoofing” (que foi a operação responsável por apreender as mensagens ilegalmente obtidas e identificar os autores dos vazamentos das conversas entre Moro e os integrantes da Lava-Jato).
O referido Desembargador, portanto, ao negar o pedido da defesa de acesso integral ao conteúdo das mensagens interceptadas ilegalmente, agiu de forma equivocada.
Logo, na visão do Desembargador, a prova ilícita não poderia ser aproveitada porque além decorrer de ato criminoso, não atestava a inocência do réu.
Nesse diapasão, Silva e Lopes Jr (2019) em texto sobre a admissibilidade da prova ilícita pro reo, ressaltam que no caso de Lula a ilicitude originária da prova veiculada pelo The Intercept não macula o seu aproveitamento pela defesa. Segundo os autores, o uso dessas provas pela defesa não guarda qualquer conexão com a ilicitude originária. Trata-se, portanto, segundo os autores, de provas obtida por fonte independente.
No mais, os autores afirmam que ainda que a prova ilícita tivesse sido obtida pela defesa, mesmo assim, ela poderia ser utilizada, já que neste caso, a defesa estaria acobertada “por uma espécie de legítima defesa ou estado de necessidade para provar a nulidade ocorrida no processo ou sua inocência.” (SILVA; LOPES JR, 2019)
Entendemos, portanto, que a prova ilícita pode ser utilizada não apenas para provar a inocência, mas também para atestar eventuais irregularidades processuais que possam culminar na nulidade de um processo.
E no caso do Lula, como bem salientado pelos autores acima mencionados, a defesa não violou qualquer regra para obter tais provas. Não havendo que se falar, dessa forma, em conexão entre a ilicitude originária e a possível utilização das provas pela defesa.
Por fim, conclui-se que a relação entre MPF e o ex- Juiz Sérgio Moro além de antiética, foi totalmente ilegal; na contramão do que impõe os princípios constitucionais.
Assim, não restam dúvidas que o presente caso deveria e deve ser anulado, nos termos do art. 564, inc. I, do CPP, pela falta de fair play e consequente ruptura da exigível imparcialidade judicial. O jogo sujo está plenamente caracterizado em todas as etapas processuais, já que desde a fase preliminar Sérgio Moro já estava totalmente contaminado pelo material acusatório, ainda que frágil
Por essas e outras é que dizemos que a prevenção deveria ser regra de exclusão e não de fixação de competência (art. 69, inc. VII, CPP). Um juiz que atua na fase preliminar autorizando interceptação telefônicas, buscas e apreensões, dentre outras medidas persecutórias, claramente envolvido está com a versão da acusação. É a consequência básica da teoria da dissonância cognitiva.
Logo, a primeira impressão é a que fica, e nesse caso, a primeira impressão que ficou foi a de que o triplex havia sido recebido pelo ex-presidente como pagamento de propina do esquema criminoso que assolou a Petrobras.
REFERÊNCIAS
MARTINES, Fernando. Gebran do TRF-4, considera mensagens ilícitas e não acolhe pedido de Lula. In: Consultor Jurídico. Disponível aqui.
SILVA, Philipe Benoni Melo e; LOPES JR, Aury. Daqueles que violam direitos e garantias fundamentais, o inimigo sou eu. In: Consultor Jurídico. Disponível aqui.
STRECK, Luiz Lenio. Condução coercitiva do ex-presidente Lula foi ilegal e inconstitucional. In: Consultor Jurídico. Disponível aqui.
THE INTERCEPT. “Até agora tenho receio”: Deltan Dallagnol duvidava das provas contra Lula e de propina da Petrobras horas antes da denúncia do triplex. Disponível aqui.
THE INTERCEPT. “Não é muito tempo sem operação?”: Exclusivo: chats privados revelam colaboração proibida de Sérgio Moro com Deltan Dallagnol na Lava Jato. Disponível aqui.
THE INTERCEPT. “A defesa já fez o showzinho dela”: Sérgio Moro, enquanto julgava Lula, sugeriu à Lava Jato emitir uma nota oficial contra a defesa. Eles acataram e pautaram a imprensa Disponível aqui.
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