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Reflexões sobre o presente e o Direito Penal e os modos de punição por vir

Reflexões sobre o presente e o Direito Penal e os modos de punição por vir

Os tempos que correm certamente não deixam de incomodar aqueles atentos ao espectro de morticínio e ressentimento que ronda os discursos e as práticas penais. São tempos em que, não pela primeira vez, a gradual transformação e decomposição do tecido social vai suscitando sintomas mórbidos, deslocando problemas oriundos da própria base de reprodução material da sociedade para as agências de controle social e os aparatos repressivos do Estado. 

A relação entre as variáveis que envolvem a produção e circulação de bens materiais e serviços (meios de produção, matéria-prima, mão-de-obra, proporção entre capital constante e capital variável, taxa de lucro, mais-valor, etc.) e as formas de controle e gestão da “criminalidade” não é, porém, mero acaso ou escolha metodológica arbitrária. Trata-se de compreender o sistema persecutório-punitivo a partir do próprio movimento das diferentes “formas de vida” que se sucedem na história, para lembramos do oportuno conceito de Giorgio Agamben. 

Não há pouco tempo George Rusche e Otto Kirchheimer lançaram as bases para uma compreensão do sistema penal à luz de sua própria historicidade  – ou, mais precisamente, sob as lentes do método dialético-materialista:

Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às relações de produção. É preciso portanto pesquisar a origem e a força dos sistemas penais, o uso e a rejeição de certas punições e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e, consequentemente, fiscais.

Eis a premissa, portanto: compreender o sistema penal implica entender qual é o estado e a configuração do atual modo de produção e circulação do que se convencionou chamar de “mercadoria”. Contudo, tratando-se esse modo de produção e circulação de uma verdadeira “forma de vida” – posto que a sociedade de mercadorias se totalizou, isto é, o capital se tornou uma “totalidade”, de modo que nada escapa à sua lógica estruturante –, é necessário apreender suas determinações centrais para que se torne possível delinear quais são as atuais características dos discursos e práticas punitivas contemporâneos.

Entretanto, é evidente que este esforço hercúleo seria impossível nestas parcas linhas. Pretendo, porém, suscitar algumas questões que preocupam o nosso tempo.

Primeiramente, é preciso assumir que vivemos naquilo que Paulo Arantes denominou “sociedade em escombros”, ou no que poderíamos chamar, na esteira de Cristophe Guilluy, de sociedade “associetal” ou “não-sociedade”. 

O que isso significa? Em síntese, quer dizer que, atualmente, sobretudo após o fim do modelo fordista de acumulação nos anos 1970, o escalonamento dos modos de acumulação flexível, a financeirização da economia e a “uberização” do trabalho, vivemos em uma sociedade cuja fratura entre ricos e pobres, entre “integrados” e “apocalípticos”, encontra-se cada vez mais exposta. Uma cisão, aliás, constitutiva do próprio modo de vida que se produziu no contemporâneo, e que anuncia a iminência do colapso da sociedade sobre si mesma. 

Em segundo, precisamos compreender que essa fratura não deixa de repercutir, é claro, no campo das agências de persecução penal. A distância cada vez maior entre o Estado e essa massa multidudinária excluída dos cálculos do poder – ou melhor, incluída sob a forma de exclusão, para lembrarmos mais uma vez de Agamben – por certo produz seus efeitos na forma como os discursos punitivos e as formas de punição se configuram.

Foi precisamente isto o que vimos recentemente durante a pandemia: os verdadeiros desígnios do poder soberano, seu distanciamento das necessidades materiais do corpo social e sua submissão à lógica da acumulação e da pilhagem ficaram evidenciados. Pudemos presenciar o Estado assumindo sua condição de fiador do saque da riqueza social e de mantenedor do status quo. Mas, mais do que isso, vimos em diversos momentos o Estado se quedar inerte diante da penumbra da morte fazendo sombra sobre os vulneráveis.

Nas periferias e no sistema prisional: foram aí que os efeitos da pandemia se tornaram mais visíveis. Não propriamente da pandemia, mas os efeitos da reação – ou ausência dela – do Estado em relação à pandemia. Não é nenhum segredo que as populações periféricas foram as mais atingidas pela pandemia, tampouco que as prisões brasileiras se tornaram um “verdadeiro barril de pólvora viral”, colocando em risco a vida de centenas de milhares de pessoas encarceradas.

Essa lógica de abandono da multidão à própria sorte não é por acaso. Não seria de todo incorreto dizer que, sobretudo durante a pandemia, em relação a esses segmentos da população o Estado brasileiro deixou a “biopolítica” em segundo plano – a produção de formas de se “fazer viver e deixar morrer” – e assumiu a “necropolítica” como modus operandi de gestão da crise pandêmica: não se trata mais de fazer viver e deixar morrer, mas de matar, expor à morte e deixar viver, ou seja, de efetivamente inscrever a morte na ordem poder como forma de subjugar a vida ao poder de morte do Estado.

É imperioso, contudo, notar algo fundamental: a eliminação – produzida ativamente ou por omissão – de determinados segmentos da população somente é possível em um estágio de desenvolvimento do modo de produção em que determinados corpos humanos tornam-se sobressalentes, isto é, “obsoletos” em relação às necessidades das formas de produção e circulação de bens e serviços. 

Em outras palavras, a consolidação da necropolítica, junto à biopolítica, como forma de gestão populacional e a promoção de um Estado verdadeiramente “suicidário” – isto é, que efetiva a destruição real do próprio corpo social – apenas é possível a partir do momento em que o modo de produção passa a prescindir de trabalho vivo abundante, isto é, de mão-de-obra farta. 

Arrisco-me a dizer que, após a pandemia, essa hipótese se fortaleceu: talvez determinados segmentos da população, considerando as necessidades do capitalismo neoliberal, tenham se tornado absolutamente dispensáveis; refugo humano, diria Bauman. Diante disso, é inevitável a indagação: o que será do direito penal e dos modos de punir em uma sociedade em que corpos humanos são cada vez mais considerados como absolutamente descartáveis?

A resposta a essa pergunta só será possível se começarmos a fazer as perguntas certas.

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