A política de perseguição dos refugiados e migrantes como crime contra a humanidade
A imprensa e relatórios das Nações Unidas e de organizações não-governamentais revelam a maneira como alguns países têm tratado a questão dos refugiados e imigrantes, sempre a partir de uma ótica de defesa nacional, que passa a justificar violações a direitos humanos que podem configurar crimes contra a humanidade.
A política interna da migração voluntária ou forçada de países como Austrália, Hungria e Estados Unidos se baseia na retórica da “defesa do interesse nacional”, a partir da qual se justificam violações sistemáticas aos direitos humanos de quem viu na migração a possibilidade de garantir um futuro para si e sua família (migração voluntária por questões econômicas, como ocorre com os mexicanos e centro-americanos que migram para os Estados Unidos) ou daqueles que se viram forçados a migrar por força de guerra e perseguições política ou religiosa (é o caso dos sírios ou dos africanos do Chifre da África que fogem para Europa em razão de guerras civis em seus países de origem).
Segundo o Direito Internacional dos Refugiados (representado pela Convenção dos Refugiados de 1951, pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e pela Declaração de Cartagena de 1984), os Estados são obrigados a darem refúgio a pessoas vindas de outros países sempre que, em razão de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas ou porque sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira ou conflitos internos, violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública, e que por conta dessas circunstâncias tenham sido obrigadas a deixarem o país de origem e, em razão do temor causado pela perseguição ou pela violência, não puderem voltar ao seu país.
Enquanto os refugiados estão protegidos especificamente pelo Direito Internacional dos Refugiados, os migrantes que voluntariamente deixam seus países em busca de condições de vida melhores do ponto de vista econômico contam com a proteção global do Direito Internacional dos Direitos Humanos, de modo que, em qualquer um dos casos, não haveria que se tolerar a retórica de “defesa nacional” em detrimento dos direitos humanos dos refugiados e migrantes, porque os Estados têm a obrigação jurídico-internacional de salvaguardarem a dignidade humana de qualquer pessoa, mesmo que estrangeira.
A título de exemplo de como os Estados têm tratado atualmente a questão dos refugiados e migrantes voluntários, uma petição ao Procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) da ONG Global Legal Action Network e da clínica de direitos humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Stanford acusou que a política da Austrália em relação aos refugiados pode configurar crimes contra a humanidade.
Segundo a petição, os refugiados que chegam à Austrália são levados a instalações privatizadas mantidas nas ilhas Nauru e Manus, para onde são levados de barco pelas autoridades australianas e mantidos presos por longo prazo, em condições desumanas, incluindo frequentemente o abuso físico e sexual de adultos e crianças.
Outro exemplo é a Hungria, onde, segundo a Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia, milícias foram recentemente criadas para bloquear a passagem de imigrantes vindos dos países árabes em guerra civil (como Síria e Iêmen) e empurrá-los de volta ao lado sérvio da fronteira.
Embora essas milícias sejam constituídas de maneira privada, há tolerância das autoridades húngaras, inclusive quando cometem atos de violência contra os refugiados, como lesões corporais e detenções arbitrárias.
No caso dos Estados Unidos, segundo a ONG Human Rights Watch, a política anti-imigratória americana adotada há 20 tem levado à sistemática violência contra os imigrantes, especialmente aqueles vindos do México e América Central.
Prisão arbitrária, deportação automática sem direito de defesa, separação familiar e omissão de socorro (nos casos dos imigrantes que tentam cruzar o deserto do Arizona e acabam se perdendo, sendo muitas vezes deixados à própria sorte pelas autoridades americanas) são exemplos de atos de violência que colocam em perigo os direitos humanos dos migrantes.
Tomando esses três casos como exemplos da política anti-imigração que tem contaminado o globo e a partir da provocação do professor Mark Kersten em seu blog Justice in Conflict, é possível discutir se de fato a política que esses três países adotam referente aos refugiados e migrantes pode configurar crime contra a humanidade à luz do Estatuto de Roma, que fundou o Tribunal Penal Internacional.
O artigo 7º do Estatuto de Roma elencou várias condutas que, se forem perpetradas num quadro de um ataque, sistemático ou generalizado, contra uma população civil, desde que o agente conheça esse ataque, configuram crimes contra a humanidade.
São elas (previstas no parágrafo 1º do artigo 7º): a) homicídio; b) extermínio (como a sujeição das vítimas a condições degradantes que levem a sua morte); c) escravidão; d) deportação ou deslocamento forçado de uma população; e) prisão ou outra forma severa de privação da liberdade em violação às normas fundamentais de direito internacional; f) tortura; g) violência sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável; h) perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional (diferencia-se do genocídio por que não se exige o dolus specialis da “intenção de destruir, no todo ou em parte”); i) desaparecimento forçado de pessoas; j) apartheid e k) outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
De acordo com o Estatuto, para a caracterização dos crimes contra a humanidade não se faz a necessária a vinculação do ataque a um conflito armado, de sorte que esses crimes podem ser cometidos em tempos de paz (ao contrário da definição trazida pelo Tribunal de Nuremberg, que exigia que as condutas estivessem relacionadas com uma situação de guerra).
O Estatuto de Roma exige como elemento de contexto a presença de um “ataque contra uma população civil” e compreende esse “ataque” como “qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1o contra uma população civil (qualquer população civil, incluindo os refugiados ou migrantes), de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista o atendimento dessa política (artigo 7º.2.a).
O elemento de contexto (ataque contra população civil) diferencia em termos de gravidade um crime de homicídio ou de tortura cometido como parte de uma política de Estado ou de uma organização daqueles cometidos de maneira isolada (que podem até configurar violações aos direitos humanos, mas não caracterizam crimes internacionais).
É a prática de um ataque sistemático ou generalizado contra uma população civil, exigido pelo caput do artigo 7º, que representa a vulneração da proteção jurídica dos direitos humanos imposta pelo Direito Internacional, colocando em risco a segurança da humanidade.
Consoante o Estatuto de Roma, o ataque à população civil deve atender a uma política de Estado ou a de uma organização não-estatal (como as milícias anti-refugiados atuantes na Hungria), pois é essa política que permite que os crimes sejam cometidos em larga escala e, por vezes, pode garantir a impunidade dos seus perpetradores no plano doméstico.
No caso dos crimes contra a humanidade, a responsabilidade será individual, ou seja, poderão ser responsabilizados penalmente os indivíduos que cometeram ou ordenaram os atos de violência, bem como os que prestaram auxílio aos autores do crime.
De acordo com o Estatuto de Roma, cabe, em primeiro lugar, à jurisdição doméstica a apuração da responsabilidade penal dos perpetradores dos crimes contra a humanidade.
Apenas no caso de não haver disposição política ou diante da impossibilidade por falta de recursos humanos e materiais para levar a cabo investigação e julgamento desses crimes é que o TPI pode exercer sua jurisdição (conforme artigo 17 do Estatuto de Roma).
Poderia, então, o TPI exercer sua jurisdição sobre o caso da Austrália (que é Estado-parte do TPI), como pediram a ONG Global Legal Action Network e a clínica de direitos humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Stanford?
Se preenchidos os requisitos mencionados, não haveria nenhum óbice (a não ser a “realpolitik”, que tem servido para encampar uma seletividade declarada no funcionamento do Tribunal), porque estão presentes na política anti-refugiados australiana ao menos três das condutas proibidas pelo artigo 7º do Estatuto (privação arbitrária e degradante da liberdade, violência física e tortura).
O mesmo raciocínio poderia ser aplicado à Hungria, que também é parte do TPI.
Quanto aos Estados Unidos, embora se vejam preenchidos os requisitos para a configuração dos crimes contra a humanidade, o país não é Estado-parte do TPI, de modo que o Tribunal não poderia exercer sua jurisdição sobre a política anti-imigração daquele país, a não ser que houvesse uma resolução do Conselho de Segurança da ONU nesse sentido, nos moldes do artigo 13.b do Estatuto de Roma, o que seria pouco provável de ocorrer visto que os Estados Unidos são membros permanentes do Conselho e, portanto, com poder de veto.
REFERÊNCIAS
BASSIOUNI, M. Cherif. Crimes against Humanity in International Criminal Law. 2. ed. Haia: Kluwer Law International, 1999.
JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos Refugiados e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007.
WOLFFHÜGEL GUTIÉRREZ, Christian. El elemento contextual del crimen de lesa humanidad: una visión en el marco de las decisiones de la Corte Penal Internacional In: BOEGLIN, Nicolás; HOFFMANN, Julia; SAINZ-BORGO, Juan Carlos (org.). La Corte Penal Internacional: una perspectiva latinoamericana. San José: Upeace University Press, 2012, p. 404-420.