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Regra penal para quê(m)?

Regra penal para quê(m)?

Este é um complemento técnico dos três últimos textos da coluna que, em parte, eu já havia publicado aqui, em 2015. Lá vai!

A pena não existe! (Rusche-Kirchheimer). O que existe são sistemas punitivos, práticas penais moldadas pelo sistema social e principalmente econômico de cada nação, em sua época.

E que, por isso mesmo, na passagem do sistema feudal para o sistema capitalista, prevaleceu o interesse da classe que passou a ditar as regras da política e da economia daquele tempo, aquela classe esclarecida, ilustrada, culta, proprietária, “revolucionária” e liberal: a burguesia.

Daí uma primeira conclusão: o sistema punitivo (portanto, o Direito Penal) da modernidade é um sistema tipicamente burguês.

A superpopulação europeia de fins do séc. XV suscitou um excedente de mão-de-obra e, consequentemente, “desemprego”, fome, miséria, e, daí, o aumento da criminalidade, baseada principalmente na propriedade privada: roubar e matar para comer!

Nesse contexto, aqueles detentores do poder político e econômico elaboram um sistema punitivo que objetiva a preservação da [sua] propriedade.

Por isso recolhemos dos anais da história das punições, logo no início do séc. XVI, as penas mais atrozes direcionadas à “marginália”, quando a ordem era se livrar dos sujeitos “perigosos” que ameaçavam a propriedade burguesa: açoite, mutilação, marcação a ferro, banimento, morte.

Logo em seguida, foi criada a fiança: quem tem dinheiro paga a fiança e não é açoitado/mutilado/marcado-a-ferro/banido/morto.

O séc. XVI alterou substancialmente a forma punitiva – capaz de nos atingir, em pleno séc. XXI, dada a sua nova caracterização: a exploração da força de trabalho do preso.

Isso começou com as penas de galés, no tempo das expedições ultramarinas. Cada galé (grande embarcação transatlântica que rumava à Colônia para capturar riquezas e retornar à Metrópole) necessitava de centenas de remadores!

O emprego era mal remunerado e extremamente insalubre. Portanto, traçou-se a “estratégia” de criminalizar a mendicância e a vadiagem, com a pena de galé: mão-de-obra barata para remar os transatlânticos, em busca das riquezas das Colônias.

Aqui está o mercantilismo (primeira fagulha do sistema capitalista!) sendo em parte sustentado por um método punitivo! Lembremos de Morus: “seria pouco sábio executar malfeitores, pois seu trabalho é mais lucrativo que sua morte”.

A grande questão de fundo dos sistemas punitivos é a relação estabelecida entre cárcere e sociedade. Ou seja: quem está (deve estar) dentro e quem está (deve estar) fora.

É uma questão posta por Baratta, assim: quem tem o poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização? A chave da questão está em compreender quem detém o poder de dizer o que é crime.

Entende-se o cárcere como proteção da sociedade. Nesse ponto, Alvino Sá responde ao dizer que no nível consciente o que se pretende é estar livre do “transtorno” ou do “perigo” que representa o criminoso.

No nível inconsciente, temos a expulsão dessa “ameaça” (que se interioriza e se nos projeta, intimamente e potencialmente), simbolizando a “expulsão do criminoso que existe dentro do indivíduo”. Ou seja: “por intermédio da prisão, a sociedade se ‘purifica’ e se livra de todos os seus males”.

Ou seja, e nesse sentido, o criminoso passa a ser “um concentrado de todos os males da humanidade, e a sociedade tem necessidade urgente de puni-lo severamente, prendê-lo, segregá-lo, pois assim estará punindo o que existe de ruim dentro dela”.

Carnelutti observou, com a genialidade da simplicidade, que aqueles enjaulados no cárcere são vistos por nós não como seres humanos “partícipes de uma triste realidade”, mas como “pessoas fictícias” ou mesmo “animais de um jardim zoológico”, distantes, inimigos, bandidos, que MERECEM estar na jaula.

Até hoje não vislumbro melhor citação do que esse maestro para expressar as “misérias” do cárcere e do encarcerado:

Quando, pela compaixão, reconheci no pior dos presos um ser humano, como eu, quando se dissipou toda aquela névoa que me impedia de ver que eu nunca fui melhor do que ele, quando senti pesar sobre mim também a responsabilidade pelos seus delitos, quando eu meditava, naquela Sexta-Feira Santa, diante da cruz e senti uma voz bradar dentro de mim: ‘Judas é teu irmão’, compreendi que os homens não podem ser divididos em bons e maus, tampouco em livres e presos, pois fora do cárcere existem pessoas muito mais presas do que as que estão dentro dele e, dentro dele, muitas pessoas muito mais livres do que as que estão, em liberdade, fora dele. Todos nós somos prisioneiros do nosso egoísmo, uns mais, outros menos, mas talvez não haja maior ajuda para nos livrarmos dele do que conhecermos as pobres criaturas enclausuradas entre os muros de uma penitenciária.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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