Repatriação e presunção de inocência
Por Bruno Milanez
Com a entrada em vigência da Lei 13.254/16, instituiu-se o regime especial de regularização cambial e tributária de recursos, bens e/ou direitos de origem lícita, irregularmente remetidos ou mantidos no exterior. Trata-se daquilo que se convencionou denominar de Lei de Repatriação (nomenclatura bastante duvidosa, por sinal, tendo-se em consideração que a regularização não pressupõe a repatriação do ativo, ou seja, é possível regularizar sem repatriar).
A Lei foi recentemente regulamentada pela Instrução Normativa 1.627, da Receita Federal do Brasil, e confere diversas vantagens de ordem penal, administrativa e tributária àqueles que aderirem voluntariamente ao programa de regularização.
No que se refere ao aspecto penal, dentre as vantagens conferidas pelo legislador, encontra-se a extinção da punibilidade em relação determinados delitos – normalmente vinculados à remessa e/ou manutenção dos ativos de forma irregular no exterior (v.g. evasão de divisas, sonegação fiscal, falsidade documental e lavagem de dinheiro) – nos termos do art. 5º, § 1º e incisos da Lei de Repatriação.
Por outro lado, a regra do art. 1º, § 5º, II, da Lei, obsta que cidadãos condenados pelos delitos acima referidos possam aderir ao programa:
Art. 1º (…) § 5º – Esta Lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal: (…) II – cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1o do art. 5o, ainda que se refira aos recursos, bens ou direitos a serem regularizados pelo RERCT. – g.n. –
O art. 4º, § 3º, da Instrução Normativa, por seu turno, prevê que “não poderá optar pelo RERCT quem tiver sido condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do art. 5º da Lei nº 13.254, de 2016, ainda que não transitada em julgado.” – g.n. –
Parcela da doutrina aponta que o dispositivo da Instrução Normativa da RFB é incompatível com o art. 1º, § 5º, II, da Lei de Repatriação, principalmente quando cotejado o princípio constitucional da presunção de inocência e com o art. 5º, § 2º, II, da Lei, segundo o qual “a extinção da punibilidade a que se refere o § 1º somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”
A partir dessa divergência, é possível formular alguns questionamentos, na tentativa de interpretar as regras em jogo.
A primeira pergunta é: o óbice à adesão ao programa de regularização previsto no art. 1º, § 5º, II, da Lei de Repatriação está vinculado ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória?
A segunda pergunta, derivada da primeira, é: há incompatibilidade entre o art. 5º, § 2º, II, da Lei e o art. 4º, § 3º, da Instrução Normativa?
A terceira pergunta é: há incompatibilidade entre o art. 1º, § 5º, II e o art. 5º, § 2º, II, da Lei de Repatriação?
Vamos às possíveis respostas.
No que se refere à primeira pergunta, importante rememorar que a regra do art. 1º, § 5º, II, da Lei de Repatriação, prevê que não poderá aderir ao programa de regularização de ativos quem houver sido condenado criminalmente pelos delitos previstos no art. 5º, § 1º, da mesma Lei.
A regra não condiciona, ao menos de forma expressa, o óbice da adesão ao programa ao trânsito em julgado da condenação penal. Nesse aspecto, um vetor interpretativo do dispositivo legal é o Projeto de Lei 2.960/2015, que serviu de base à criação da Lei de Repatriação. O art. 1º, § 3º, do referido PL é o seguinte:
Esta Lei não se aplica aos sujeitos que, na data de sua publicação ou no momento da apresentação da declaração de que trata o art. 5º, tiverem sido condenados em ação penal, com decisão transitada em julgado, cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do art. 5º e se refira aos recursos, bens ou direitos a serem regularizados pelo RERCT – g.n. –
Como se vê – e respondendo à primeira indagação proposta –, muito embora o PL limitasse a impossibilidade de adesão ao programa de regularização de ativos ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória, a Lei de Repatriação não o fez, o que indica que, na sistemática prevista em nosso ordenamento positivo, o cidadão condenado em qualquer instância – e independente do trânsito em julgado –, pelos crimes previstos na Lei de Repatriação, não pode aderir ao programa de regularização de ativos.
Essa conclusão permite responder a segunda indagação, no sentido de que inexiste incompatibilidade entre o art. 1º, § 5º, da Lei e o art. 4º, § 3º, da Instrução Normativa. Ambos os dispositivos preveem que a condenação criminal, mesmo que não definitiva, pelos crimes previstos na Lei de Repatriação, é óbice para aderir ao programa de regularização. O dispositivo da Instrução Normativa é expresso nesse sentido, enquanto o dispositivo da Lei é implícito, mas uma interpretação da Lei de Repatriação a partir do PL que lhe deu origem permite essa conclusão.
É bem verdade que essa conclusão parece não ser compatível com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CR/88) – tese inclusive defendida por diversos doutrinadores –, o que possibilitaria, ao menos em tese, discutir pela via jurisdicional a compatibilidades das regras analisadas em face do texto constitucional.
Ademais, há diversas e problemáticas implicações práticas em impedir que um cidadão adira ao programa de regularização antes de condenação criminal não definitiva. Apenas para ilustrar a problemática, pode-se referir um exemplo prático: O indivíduo foi absolvido em primeira instância, o MP recorreu da condenação e o Tribunal, por maioria de votos (2 x 1), reforma a decisão de primeiro grau absolutória e condena o indivíduo, que opõe embargos infringentes, ainda pendente de julgamento.Veja-se que neste caso há dois juízes favoráveis à condenação e dois favoráveis à absolvição. Admitindo-se a possibilidade do acolhimento dos embargos, o indivíduo seria extremamente prejudicado caso os embargos não sejam julgados em tempo hábil para aderir ao programa de regularização (segundo a Lei, a adesão ao programa de regularização poderá ser efetivada até 31.out.2016).
Obviamente, é possível estender esse exemplo para quaisquer casos em que o cidadão tem recurso pendente de julgamento, seja nos Tribunais de Justiça, TRF’s, STJ ou STF, afinal, é possível que o recurso seja provido e seja o cidadão absolvido em tempo inábil para aderir ao programa.
Nesse aspecto, parece efetivamente que a Lei de Repatriação caminhou mal. E muito embora se reconheça que esta Lei não possui natureza jurídica exclusivamente penal, deveria o legislador ter se preocupado em harmonizar os parâmetros para a adesão ao programa de regularização de ativos com o princípio constitucional da presunção de inocência.
E ainda que se não harmonizasse a regra com a presunção de inocência, ao menos se deveria ter flexibilizado a vedação legal à confirmação da condenação por um órgão colegiado como, por exemplo, estabelece o art. 1º, I, e, da Lei Complementar 64/90, com redação dada pela Lei Complementar 135/10 (comumente denominada Lei da Ficha Limpa), para efeitos de inelegibilidade.
E por fim, resta ainda responder a terceira indagação proposta, ou seja, se há incompatibilidade entre o art. 1º, § 5º, II e o art. 5º, § 2º, II, ambos da Lei de Repatriação. Como se viu, o primeiro dispositivo prevê que a condenação, ainda que não definitiva, pelos crimes previstos na Lei, obstam a adesão ao programa de regularização de ativos. Por outro lado, o art. 5º, § 2º, II, da Lei, dispõe que “a extinção da punibilidade a que se refere o § 1º somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”
Ao que parece, esses dispositivos da Lei de Repatriação não são antagônicos. Aparentemente, a segunda regra (art. 5º, § 2º, II) incide nas hipóteses em que um cidadão está sendo processado por algum dos crimes previstos na Lei de Repatriação, porém ainda não há sentença no caso concreto (ou foi absolvido em primeira instância e o MP recorreu da decisão absolutória). Nessa hipótese, não há, prima facie, óbice à adesão ao programa, que para existir pressupõe condenação criminal. Porém, após aderir ao programa de regularização de ativos, sobrevém sentença condenatória (ou o recurso do MP é provido e a sentença absolutória é reformada). Nessa hipótese é que incide a regra do art. 5º, §2º, II, da Lei, no sentido de que, se o cidadão cumprir como todas as exigências legais da regularização, terá a punibilidade extinta.