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A república equilibrista

A república equilibrista

O período republicano brasileiro é constituído por uma série de gravíssimas crises institucionais. Nos momentos mais conturbados, assistimos ao rompimento das bases estruturais do regime democrático, enquanto em outros casos, chegamos demasiadamente perto de um colapso que desafia a inteligência dos cidadãos mais moderados na busca de uma solução pacífica.

No primeiro governo após a queda da monarquia, o país teve de enfrentar alguns conflitos armados, decorrentes do choque entre os interesses de setores do exército e das oligarquias do café.

Se não fosse pela renúncia do Marechal Deodoro da Fonseca, de tudo que havia sido construído na Cidade Maravilhosa, muito pouco teria ficado de pé. Com a consolidação do novo regime, a Política dos Governadores deu origem ao famigerado acordo do “café-com-leite”, que pretendia perpetuar o controle dos paulistas em detrimento das demais unidades da federação.

Porém, levando-se em consideração que o Brasil sempre foi, e continua sendo, um país periférico, a Crise de 29 forçava uma  mudança substancial da nossa estrutura política e econômica.

Nesse clima, Assis Chateaubrian projetou Getúlio Vargas como o líder da “Revolução de 30” para por fim à República Velha, sob a promessa da elaboração de um novo texto constitucional que retardava sair da gaveta, inaugurando a legítima onda separatista vinda de São Paulo, conhecida como Revolução Constitucionalista.

Apesar do novo arranjo político, que viabilizou a promulgação da Carta Magna de 1934, jamais houve um minuto de paz. A época era das ideologias radicais e o cenário favorável aos enfrentamentos de rua promovidos pelos seguidores de Luiz Carlos Prestes e de Plínio Salgado.

Em 1937, de forma magistral, o governo valeu-se da insegurança difundida em todos os setores para justificar o ataque direto aos direitos e garantias fundamentais. O povo não era comunista, nem fascista; era Vargas. O que havia de mentira no Plano Cohen sobrava em verdades na “Polaca”, dando origem ao Estado Novo.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, o FMI (Fundo Monetário Internacional) havia elaborado um plano para a América, no qual o nacionalismo de Perón, Cárdenas e Vargas não fazia parte. Apesar do “queremismo”, não havia como resistir à pressão do capitalismo financeiro.

E assim, como de costume, as forças militares pretorianas, sob o comando de Eurico Gaspar Dutra e Eduardo Gomes, ficaram responsáveis pela implantação da nova ordem, dando ao Brasil a promulgada Carta de 1946. Todavia, a manobra que determinou a destituição de Vargas serviu de palco para o próprio “rei deposto” anunciar que voltaria nos braços do povo.

Cumprida a profecia, concluído o governo de Dutra, Getúlio Vargas retorna ao poder pelo sufrágio popular. A oposição acirrada de Carlos Lacerda, seu maior adversário político, fragilizava significativamente as bases do poder. Desde as eleições o lema era: Vargas não pode vencer; se vencer, não irá governar; se governar, não chegará ao fim do mandato.

E em meio às acusações de que o Brasil afundava em um “mar de lama”, devido aos sucessivos escândalos de corrupção – incomparáveis às proporções de hoje, diga-se de passagem – a segurança pessoal da Presidência da República antecipou o inevitável mediante a prática de um ingênuo e grotesco atentado à vida de Lacerda, que culminou com a morte do Major Vás. Realmente, Vargas tinha razão ao dizer que aquela bala havia sido deflagrada contra ele, pois, ao perder o apoio dos seus Ministros Militares, se viu entre a renúncia ou a deposição. Preferiu, então, a opção dos mártires, deixando a vida para entrar na História.

Há uma corrente entre os pesquisadores convencida de que o suicídio do chefe da nação apenas adiou por mais dez anos o Coup d’État programado desde aquele período.

Divergências à parte, o certo é que, embora a comoção popular tenha frustrado temporariamente as articulações da tirania, o período que as antecedeu foi marcado por incontáveis incidentes que colocaram o país na “corda bamba de sombrinha”, como diziam Aldir Blanc e João Bosco em seus versos.

Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos pareciam assumir o comando do Estado como quem segura uma serpente. Juscelino Kubitscheck, embora tenha completado o seu mandato, teve de enfrentar a insubordinação de oficiais do Exército e da Aeronáutica nas revoltas de Aragarças e Jacareacanga, mas a arte de prender e anistiar parecia prudente naqueles tempos.

Jânio Quadros, talvez esperando o apoio popular para governar com amplos poderes, agravou ainda mais o clima de instabilidade, renunciando, inesperadamente, aos poderes que lhe foram conferidos por ampla maioria do eleitorado, que cria na oportunidade de varrer a corrupção na cúpula do governo. Curioso constatar que as forças que o levaram a tomar essa esdrúxula decisão até hoje permanecem ocultas.

Com a saída da UDN do poder, havia quem preferisse a guerra civil do que a posse de um representante do velho modelo nacionalista, apoiado por Leonel Brizola,  governador do Rio Grande do Sul.

Cogitou-se, assim, a execução da chamada “Operação Mosquito”, que consistia no assassinato do latifundiário acusado de ser simpático ao comunismo, o então Vice-presidente João Goulart, que só conseguiu fazer jus à sucessão após a aprovação da emenda constitucional que implantava o parlamentarismo.

As agitações não cessaram, e uma sequência de equívocos, incluindo a inadvertida quebra da hierarquia militar, culminou com a tomada do poder pelas armas mais uma vez. O positivismo parecia ter vencido, apesar de seus defensores até hoje não conseguirem explicar o que aconteceu com a ordem e o progresso.

As eleições diretas para a presidência da república prometidas pelo Castelo Branco nunca vieram (Cacique Juruna deve ter gravado). Muito pelo contrário, na terra onde a Constituição vale menos do que o papel no qual foi confeccionada, até o golpe sofre golpe.

A outorgada Constituição de 1967, que havia substituído a de 1946, foi desfigurada com o Ato Institucional n.º 5 construído pela “linha dura”, e as agitações de rua se converteram em luta armada.

O fim dos “anos de chumbo” somente foi anunciado no Governo Geisel, com a promessa de uma abertura política “lenta, gradual e segura”, muito mais lenta do que segura.

Mesmo assim, foram árduos tempos de inúmeros atos de terrorismo, perseguições e assassinatos, até que o Presidente João Figueiredo, que ficou famoso pela sinceridade em suas entrevistas, confessando preferir cheiro de cavalo a de pobre, consolidou o processo de transição, a fim de que a mais antiga classe política existente no país inaugurasse a chamada Nova República.

A convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte se apresentava como a solução de todos os problemas, bastando, para isso, a criação de artigos, parágrafos e alíneas.

Como resultado de uma sequência de trapalhadas, finalmente é promulgada a Constituição atual, embora a eleição permanecesse indireta para viabilizar, com a morte de Tancredo Neves, o governo civil mais militar da história do país, representado por José Sarney. Os tempos eram outros, mas os problemas continuavam os mesmos: greve geral; choque entre manifestantes e a polícia, inflação galopante etc.

Os boatos de golpe militar voltavam a ser ouvidos em todos os cantos, mas a proximidade das eleições diretas previstas para 1989 dispensava a tomada de ações extremas.

Da noite para o dia, um jovem usineiro, que já havia sido “prefeito biônico” em Alagoas, passou a liderar as pesquisas de voto logo após a Revista Veja chamá-lo de “caçador de marajás”.

Derrotando de forma extraordinária os rivais mais cotados nas pesquisas de opinião, Fernando Collor agiu na contramão das expectativas dos seus eleitores ao promover o confisco das cadernetas de poupança.

Contudo, não foi esse o motivo de sua derrubada, mas sim os problemas familiares que levaram o seu irmão a fazer revelações sobre o “esquema PC” – se comparado ao que já foi apurado pela “operação lava jato” fica abarcado pelo princípio da insignificância – que serviram de fundamento para acusação das práticas dos crimes de corrupção e de quadrilha ou bando, este último revogado em 2013.

Na ocasião, quem imaginava a solução via golpe de Estado, na realidade viu as instituições funcionarem à luz da Constituição, do mesmo modo dos governos subsequentes, como os de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Ignácio Lula da Silva e Dilma Youssef , não obstante os sérios problemas que marcaram os últimos vinte e cinco anos da vida política brasileira, sem muita novidade desde o período colonial.

A partir do mandato de Michael Temer, que assumiu a presidência após o impeachment de Dilma Youssef (anistiada pelos tiros, porém condenada pelas pedaladas), a desconfiança sobre até quando os ideais republicanos conseguirão se sobrepor às mazelas da tirania vem abatendo a tranquilidade de grande parte da população.

As constantes violações à ordem constitucional vigente, causadas até mesmo por aqueles sobre os quais recai o dever funcional de protegê-la, coloca o Estado Brasileiro em situação de perigo e na iminência de sofrer danos irreparáveis.

A recente decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no sentido de afastar um parlamentar sem a prévia autorização da casa legislativa a qual pertence, cumulada com a medida cautelar de recolhimento domiciliar, gerou a mais grave crise institucional da historiografia brasileira, podendo ser considerada como o somatório de todas as que foram anteriormente mencionadas.

O pior é que o fato ocorreu dias após o General Antônio Hamilton Mourão declarar publicamente o seu posicionamento em favor da intervenção militar, sem, contudo, receber qualquer resposta além do silêncio ensurdecedor das autoridades.

Para a sorte dos que prezam pelo Estado de Direito, ao final das treze horas de debate no Plenário do Supremo Tribunal Federal, por apertada maioria dos votos, os ministros consolidaram o entendimento de que o Poder Judiciário não pode aplicar, de forma autônoma, aos membros do Congresso Nacional, sem a devida apreciação da respectiva casa legislativa, as medidas cautelares arroladas no art. 319 do Código de Processo Penal, que afetem, direta ou indiretamente, o exercício do mandato.

Com a decisão proferida em antecipação à deliberação do Senado, evitou-se o caos jurídico anunciado. Apesar de a jurisprudência ter sido costurada como colcha de retalhos, reduzindo-se a termo discursos confusos, lidos com voz embargada e trepidante, o que importa é que a ordem constitucional e o regime democrático foram salvos.

O mais curioso de todo o episódio que dominou os noticiários por duas semanas reside na natureza da medida cautelar aplicada, que passou muito longe dos debates na imprensa e na própria Suprema Corte.

Até a presente data, ninguém conseguiu explicar qual a cautela pretendida com a proibição de um parlamentar sair de sua casa após determinado horário, e de que forma a imposição judicial poderia evitar a reiteração dos supostos delitos investigados ou favorecer a colheita de provas ou impedir eventual evasão.

A imposição parece ter como único objetivo o de sancionar um indivíduo que sequer foi denunciado pelo Ministério Público, além de submeter o Senado a uma dura e inaceitável humilhação.

Aliás vale a pena especular a seguinte hipótese: se a determinação fosse desrespeitada, a medida cautelar seria convertida em prisão preventiva, mesmo não estando prevista na Constituição da República ou iríamos fazer uma interpretação extensiva do art. 319 do Código de Processo Penal para acrescentarmos, por exemplo, a proibição de ver televisão? Ora, é o Código de Processo Penal que deve ser interpretado à luz da Constituição e não o contrário.

O mal que atinge as instituições na atualidade é a existência de plateia permanente nas redes sociais para qualquer um que sinta, por razões das mais variadas, desejo de escandalizar ou simplesmente obter notoriedade.

Nos Estados Unidos, Donald Trump é prova contundente dessa teoria, e aqui no Brasil, nenhum outro exemplo supera o da Suprema Corte. Não é por acaso que os onze ministros tenham o índice de popularidade superior aos titulares da seleção brasileira.

Eis aí a grande distorção que precisa cessar! Integrantes do Poder Executivo que dependem do voto popular necessitam identificar e dizer aquilo que a população quer ouvir, fazendo parte do jogo de sedução do eleitorado até mesmo as mentiras mais descaradas.

Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal tem a incumbência de identificar e dizer aquilo que está na Lei Maior, independentemente dos efeitos que possam causar à opinião pública. E se o texto constitucional não representa mais os valores da sociedade, que seja convocada um nova assembleia constituinte.

Sergio Gurgel

Professor de Direito Penal e Processual Penal. Advogado.

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