Resenha – “A crise de legitimidade do direito penal na sociedade contemporânea”, de Carlo Velho Masi
Por Pierpaolo Cruz Bottini
A obra tem uma compreensão de contextos da sociedade contemporânea raramente encontrada em trabalhos do gênero. O autor passeia por temas diversos – da dogmática penal ao processo penal – na busca de uma linha comum, uma espinha dorsal, que revele a nota dos tempos que vivemos e que impactam o sistema penal com um todo. E chega à conclusão de que este elemento central é a sensação do perigo que caracteriza a chamada sociedade de riscos.
Quando se fala em sociedade de risco, é comum a resposta crítica que apresenta a comparação da sociedade atual com outras passadas, indicando naquelas um “perigo de viver” muito maior do que o atualmente existente. E é verdade. Os perigos para nossas vidas, integridade física, saúde, eram mais intensos em outros tempos. Mas o risco, como sensação de perigo, como sentimento de proximidade e intimidade com este perigo, não se apresentava com toda a sua vivacidade. Hoje, sentimos o perigo mais próximo, mais perto. E por diversas razões: a maior parte deles tem procedência humana, o potencial lesivo destes atos humanos é maior, há uma obscuridade sobre os efeitos lesivos de cada ato arriscado, um efeito reflexivo mais grave e, por fim, um trabalho incessante dos meios de comunicação de massa, que leva tragédias e violências distantes para dentro de nossas casas. Assim, se a segurança objetiva dos tempos atuais é maior, o sentimento de proximidade com o risco também o é.
E este fator tem impactos no Direito Penal. Na legislação, como bem destaca o autor, na forma do aumento de penas e de condutas incriminadas, bem como na adoção frequente de técnicas de formatação de tipos penais que desde sempre conflitam com alguns princípios tradicionalmente sedimentados. Nessa linha, os crimes de perigo abstrato – cuja relação com o principio da ofensividade sempre foi amarga -, as normas penais em branco – que tangenciam a ruptura com a legalidade em certos casos – os crimes culposos – que mitigam a ideia de culpabilidade – e os crimes de omissão, com todos os seus conflitos com a ideia de causalidade, tão arraigada em nossa dogmática clássica.
Mas, para além da legislação, a própria ciência jurídica se vê em dificuldades. A dogmática debate à exaustão temas, sem conclusões passíveis de orientar o intérprete, de colaborar com a aplicação cotidiana do direito penal. Há um distanciamento marcado pela frequente e mútua ignorância, onde operadores do Direito descartam as discussões acadêmicas, tendo-as por abstratas e pouco úteis, e docentes e professores rechaçam a análise de casos concretos, apreciando mais a racionalidade de construções teóricas do que a validação de suas conclusões em situações concretas.
Este afastamento faz, muitas vezes, com que legislador e intérprete percam amarras com princípios constituídos dogmaticamente, e enveredem por searas expansionistas voltadas, como aponta o autor à “gestão eficiente de questões de segurança”, descartando estruturas de garantia ou encontrando nelas obstáculos a um justiciamento estranho ao Estado de Direito.
Por isso, é preciso saudar um trabalho que aponta tais questões, e vai além. Ao invés de cair no fácil discurso da crítica por si mesma, busca relegitimar o sistema penal, através da reconciliação com a teoria do bem jurídico, do intransigente respeito ao Estado de Direito e da dignidade humana. Tais operações são complexas, pois caminham em um espaço dialético sofisticado, que recusa respostas fáceis e predeterminadas. São, no entanto, as únicas capazes de enfrentar os complexos dilemas de uma sociedade que espera respostas, e tudo o que recebe são propostas simbólicas, sem potencial para solucionar problemas reais e concretos.
Como diria Roxin, a construção de um sistema penal aberto à Politica Criminal e à solução de constelações de casos faz com que o edifício dogmático perca em beleza, em solidez, mas o transforma em um instrumento capaz de orientar o intérprete diante das questões factuais que se colocam. Este é o caminho para evitar que o “direito penal do risco acabe colocando em risco o próprio (legitimo) direito penal”. E este é o caminho seguido pelo autor.
Pierpaolo Cruz Bottini
Professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP, pela qual é Mestre e Doutor. Autor de diversas obras jurídicas e artigos em periódicos e publicações especializadas. Membro da diretoria da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) – seção brasileira. Membro da Comissão Julgadora do Premio Innovare. Coordenador regional e Diretor da Comissão de Direito Penal Econômico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado criminalista.
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