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Resistir ou aceitar o direito penal ‘do risco’?


Por Rafhaella Cardoso


A sociedade contemporânea não é a mesma de séculos atrás. E não seria diferente: passamos por um processo de revolução industrial, avançamos em termos de acesso a produtos, tecnologias e inovações diversas, inclusive em termos globais, como nunca antes visto na história da humanidade. Mas nem tudo que é “bônus” está isento de “ônus”. Passamos a contar com novos riscos no modo de viver, e, muitos deles, foram inseridos em decorrência da própria atuação humana, como num efeito “boomerang”. Se “ontologicamente”, a sociedade se tornou mais complexa com a inserção de riscos, podemos pretender manter o Direito Penal nos mesmos patamares clássicos do proposto por Feuerbach, Beccaria e autores do iluminismo humanitário? Entre resistir ou aceitar um Direito Penal “do Risco”, importantes considerações são feitas neste breve ensaio.

Para que se possa identificar as possíveis influências da então “sociedade de risco” ou “parâmetro de segurança” no Direito Penal, mais especialmente na tipicidade penal (mais claramente nos tipos penais ambientais ou econômicos), no que tange à forma de tutela escolhida pelo legislador e a apuração dos nexo causal entre conduta e resultado, é preciso, contudo, esclarecer alguns pontos cruciais sobre a ideia deste novo paradigma social.

Alguns aspectos importantes podem, resumidamente, definir o que tanto se midiatiza e denomina (até impropriamente, às vezes) como sendo “sociedade de risco”. Um dos primeiros aspectos, conforme sustentado por BECK(2010, p. 66) é a mudança no potencial dos perigos atuais relacionados aos de épocas anteriores, já que os de agora são artificiais e não meramente causados por infortúnios naturais, pois são produzidos pela atividade do homem e vinculados à decisão deste. Aliás, estes perigos ameaçam um número indeterminado e potencialmente alto de pessoas, ameaçando, por vezes, toda a humanidade (já que relacionados à exploração e manejo de energia nuclear, produtos químicos, recursos alimentícios, riscos ecológicos etc.). A globalização não produz só riquezas, produz novos riscos(DI GIORGIO, 1994, p. 45) também.

Segundo BECK, tais riscos são consequências secundárias do progresso tecnológico, com efeitos indesejados, imprevisíveis. O problema, segundo o autor, está nos efeitos acessórios, de ordem social, econômico e político que vem por trás dos efeitos imediatos que certas atividades possam desencadear à vida humana e aos animais (BECK, 2010, p. 66 e ss.). Buergo questiona se tais perigos são, de fato, imprevisíveis e incontroláveis, ou, se ao revés, é possível encontrar alguma maneira de mensurá-los (MENDOZA BUERGO, p. 28).

A inserção da noção destes riscos faz surgir um problema real de imputação e atribuição das responsabilidades pelas consequências indesejadas, não só às pessoas físicas quanto às jurídicas (incluindo-se as autoridades administrativas), pois diferentemente da primeira modernidade, não tem como mais se culpar a Deuses, às forças da natureza ou ao destino. Desta forma, segundo BECK, surge um problema não só em relação à quantificação ou qualificação destes riscos, mas profundamente em relação à culpabilidade ou responsabilização dos mesmos (BECK, 2010, p. 66 e ss).

Com isso, surge o segundo aspecto que define a sociedade de risco: a complexidade organizacional e seus desdobramentos nas relações de responsabilidade, dados os novos contextos coletivos em detrimento de situações meramente individuais. Segundo BUERGO, quanto mais complexa e aperfeiçoada é uma organização, mais o indivíduo se sente menos responsável pelas suas ações, já que este acaba considerando que “não é o único” a tomar determinada conduta ou “que sua contribuição é irrisória” em determinada situação (MENDOZA BUERGO, 2001, p. 29).

Os referidos aspectos condicionam ao binômio: insegurança-risco, ou seja, leva-se a uma sensação subjetiva de insegurança(MENDOZA BUERGO, 2001, p. 30), havendo ou não perigos a se temer. Assim, em nome da intensa demanda por segurança, busca-se a todo custo, não só desenvolver uma proteção objetiva de riscos e perigos, senão também à necessidade de sustentar a confiança deste tipo de proteção.

Segundo SALVADOR NETTO, “a periculosidade alcança não apenas o mundo material físico, como os rios, as águas, os animais, a saúde, mas também as esferas institucionais elementares para a mantença do capitalismo de padrões avançados”(2006, p. 94). Isso, conforme demonstrado por SILVA SÁNCHEZ, provoca o fenômeno da expansão do Direito Penal, que assim se vê forçado a controlar estes novos perigos (2011, p. 33). O autor, entretanto, concebe que para o “direito penal dos riscos” deve haver uma “segunda velocidade” de intervenção penal, ou seja, um sistema que respeite os princípios de um Estado Democrático de Direito, mesmo que de forma flexibilizada e, portanto, isso importará num abrandamento do rigor das sanções. Esta situação obriga a transformação do Direito Penal clássico (idealista), estandardizado pelos corolários liberais, em um “Direito Penal da Segurança (KINDHÄUSER, 2009, p. 229)” (ou “Direito Penal do Risco”), já que suas técnicas rudimentares não conseguem promover nenhum grau de eficiência na proteção de novos bens (SALVADOR NETTO, 2006, p. 94).

O medo e a insegurança alteram as tipificações penais no que tange aos aspectos de causação de dano ou de perigo, e também vai gerar reflexos no tema da culpabilidade. Isto se deve à já mencionada falta de exatidão quanto aos riscos ou mecanismos que podem causar danos, já que, como BECK afirma, na sociedade de risco moderna as próprias pessoas produzem, por elas próprias os riscos, que muitas vezes passam despercebidos, tornando o futuro algo totalmente imprevisível(BECK, 2010, p. 30).

Para Alamiro Velludo, a integração da ideia de risco à tipicidade remonta claramente às influências da sociologia luhminiana, onde se funcionaliza o direito para atender à dinâmica social (SALVADOR NETTO, 2006, p. 95). Assim, surgem as modalidades dogmáticas dos tipos penais de perigo, cujo fundamento de criação reside na ideia de gerenciamento de riscos, a partir do etiquetamento de padrões permitidos e proibidos(Ibidem, p. 108). Eis as dúvidas que surgem para prosseguir o debate: a ampliação ou antecipação da tutela penal, com cunho preventivo, não rechaça as garantias mínimas do cidadão? Pode o jurista, dentro da complexidade que se apresenta a socieade de risco, apontar, com propriedade, quais são os verdadeiros níveis de periculosidade não suportáveis a partir de certos comportamentos?

ALBRECHT, por sua vez, já antecipa em responder a estes questionamentos, a partir de sua visão criminológica crítica acerca da ideia de “Estado de Prevenção” (Präventionsstaat) ou de “Direito Penal da Prevenção”(SALVADOR NETTO, 2006, p. 108). O autor afirma que esta pretensão de controle por parte do Direito Penal, tal como ocorre com a tutela do meio ambiente e da ordem econômica, está destinada ao fracasso e ao sacrifício dos princípios do Estado de Direito (como no caso da edição desenfreada dos tipos penais de perigo abstrato). A única função que um “direito penal da seguridade” consegue alcançar, na visão de ALBRECHT, é a simbólica, moral e política, pois, na sua concepção, os problemas permanecem e o Direito Penal (“como arma política para todos os fins”) perde a sua credibilidade (2010, p. 587).

Contudo, antes de se filiar a uma postura cética ou de se adotar um discurso de resistência, proposto por Hassemer (2003) e Prittwitz (vinculados ao que corriqueiramente se denomina – impropriamente – como “Escola de Frankfurt”), principalmente, que negam por completo a intromissão do conceito de “sociedade de risco” ao Direito Penal, muito menos na tipicidade, rejeitando a antecipação de tutela por meio dos crimes de perigo abstrato, mas, ao mesmo tempo, diante da perplexidade dos novos riscos, impõem-se a atuação de um novo ramo jurídico, chamado de Direito de Intervenção, e não do Direito Penal, que deve resistir e permanecer ao núcleo clássico e nuclear.

Ante o exposto, frente à atuação do Direito Penal na tutela dos novos riscos, relacionados, por exemplo, à tutela do meio ambiente, faz-se necessário compreender quais os problemas dogmáticos assim diagnosticados, e, apontar as críticas e soluções para os impasses entre expansão diante dos riscos versus efeito simbólico do controle penal desvinculado de necessidades político-criminais legítimas. 


REFERÊNCIAS

ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia. Uma fundamentação para o Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

DI GIORGIO, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea. Tradução de Cristiano Paixão, Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Revista do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, n.º 28, Ano 15, junho de 1994 – p. 45-54. Disponível na Internet em: file:////Platao/www/arquivos/RevistasCCJ/Seque…Giorgi-O_risco_na_sociedade_contemporanea.html. Acesso em: junho de 2016

HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direito Penal, in: Revista de Estudos Criminais, [Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, de Kennzeichen und Krisen des modernen Strafrechts], n.º 08, 2003, p. 54 a 66, também publicada em Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n.º 18, 2003 p. 144-157.

KINDHÄUSER, Urs. Estructura y legitimación de los delitos de peligro del derecho penal. Trad. Nuria Pastor Muñoz. Revista Electrónica del Instituto Latinoamericano de estúdios en ciências penales y criminologia, 004-01 (2009), p. 6 e ss.) Disponível na Internet em: www.ilecip.org. Acesso em julho de 2016.

MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001.

SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade Penal e Sociedade de Risco. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2006.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

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Rafhaella Cardoso

Advogada (SP) e Professora

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