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Resposta-percurso: singularidades na contramão do universal

Resposta-percurso: singularidades na contramão do universal

resposta-percursoNoção analítica móvel, própria do abolicionismo penal libertário (…) sem a pretensão da universalização como comporta o conceito de modelo. O jeito de lidar do abolicionista libertário é um NÃO aos espaços de confinamentos prisionais ou manicomiais, e um SIM à ruptura com práticas encarceradoras que perpetuam o tribunal dentro e fora de grades rudimentares ou assépticas. Não há receitas nem mediações, apenas a relação horizontalizada entre os envolvidos num acontecimento específico em que singulares ressonâncias habitam suas vidas no presente. Distante da espera pelo fim das prisões e das modulações de encarceramentos, a resposta-percurso problematiza as reacomodações das celas socialmente aceitas até mesmo no interior do próprio abolicionismo penal e explicita a impossível conciliação com a transfiguração do tribunal como forma de perpetuação de assujeitamentos, presentes nas correntes do Direito conhecidas como garantismo, justiça restaurativa e criminologia crítica. A resposta percurso é uma perspectiva interessada na diferença de efeitos mínimos da afirmação da vida livre.

– Abolicionismo Libertário – Verbetes – Nu-Sol

Orbitando a dinâmica do poder punitivo, atravessados pela linguagem criminal, absorvidos pela lógica do “sequestro do conflito” e fé no princípio da autoridade, frequentemente fazemos péssimas perguntas diante das situações-problema.

Essas péssimas perguntas capturadas nos trilhos da linguagem criminal podem parecer muito concretas para os imersos nesse caldo, até em tom de simplicidade e obviedade, mas representam precisamente a derrota do concreto para o universal.

Fato comum entre os adversários do abolicionismo penal (sobretudo o libertário) é apontar que estes abolicionistas não entregam “respostas alternativas” para “os crimes” (respostas pré-prontas antecedendo as situações); indagam o que fazer “com os crimes” e como “derrotar a criminalidade”.

Entre tantas perguntas que materializam discursos extremamente ingênuos, que se apresentam como muito límpidos e transparentes para seus sujeitos, mas que mobilizam uma infinidade de coisas absolutamente diferentes, em condições diferentes, com sujeitos diferentes, de pensamentos, desejos, interpretações diferentes (que não se reduzem às sínteses e decisões dos “especialistas” e autoridades, como as do sequestro da vontade associado ao sequestro do conflito formulados a partir de presunções gerais e abstrações), mas comprimidas como uma mesma coisa, “um mesmo problema”.

Isso explicita o nível de sedimentação da linguagem criminal, que não existe sem um poderoso deslocamento da concretude, ainda que com a máscara de concreto, de imprescindibilidade (quase) natural, o que muito se deve às ressonâncias das doutrinas do contrato, acompanhadas da crença de que as “respostas” e os percursos da vida devem ser previamente concedidas pelas “autoridades necessárias”, numa educação para a obediência e uniformidade, tecida e martelada de modo a difundir e naturalizar a absorção do particular na razão de governo e de Estado, entre amabilidades autoritárias associadas à legitimação do poder. Recobre-se que o princípio da autoridade funciona e produz seus efeitos ainda que sem Estado, seu núcleo não é o Estado. Este, sim, não funciona sem o princípio da autoridade, não sendo o problema mais profundo, mas uma organização problemática do que precisa ser desativado.

Retornando à linguagem criminal, ocorre que uma quantidade completamente absurda de situações, frise-se, totalmente distintas, é passível de ser nela empacotada, sem nos dizer absolutamente nada de verdadeiramente concreto sobre o que ligaria logicamente todas essas coisas de modo retilíneo, e muito menos sobre o fluxo pré-estabelecido que lhes absorve, atrelado à prisão, como local, como lógica, como política, como tortura estéril que deveria ser ativada dentro dessa dinâmica. Tudo sem relação concreta com solução de problemas dos mais distintos, que demandariam igualmente percursos dos mais distintos.

O sistema de justiça criminal opera aproveitando-se de nossa fragilidade, explora o paradoxal desejo de ser governado simulando a perseguição de um dever-ser interessante para as pessoas, mas que nem sequer existe nesses termos, embora presente nos discursos penais. Os penalistas e sobretudo os constitucionalistas, nadam nesses oceanos de ilusões alimentando discursos legitimantes, criando bons sentidos para a tortura institucionalizada. Quando os entusiastas mais religiosos de discursos de contenção do poder avocam a disciplina Direito Penal Constitucional, infelizmente convive o encaixe do senso comum democrático com o senso comum criminológico (costurado ainda no senso comum teórico dos juristas de que falava Warat).

Os abolicionistas libertários do Nu-sol, o Núcleo de Sociabilidade Libertária (www.nu-sol.org), articulam em suas produções a noção de resposta-percurso, recobrando uma contundente variedade de autores, e entre eles Louk Hulsman, de modo a tentar superar a punição (com um olhar para si) sem cair em armadilhas e capturas que novamente invertam nossa relação com a concretude, nos oferecendo inserção nos trilhos do universal, entre hierarquias com respostas pré-prontas para a multiplicidade da vida; e sem reacender o que possibilita o sistema de justiça criminal, como a ideia de que as respostas estão nas cabeças das autoridades interessadas em racionalmente conter o poder (eis o Direito Penal inscrito no devaneio retórico de contenção do poder, negligenciado como poder). Não está em jogo nesses abolicionismos aplicar modelos refazendo a destruição do singular e dos únicos (recuperando Stirner contra as ideias fixas).

As soluções pensadas em percurso não podem ser fornecidas abstratamente de modo totalizante e geral, e antes das situações, como lamentavelmente esperam muitos, inclusive acadêmicos, criminólogos etc., e assim essa aberração destrutiva que é a linguagem criminal, inimiga da complexidade, promete o que os rebanhos desejam ouvir, a complexidade e a imprevisibilidade da vida “solucionada” em caixinhas que não nos dizem absolutamente nada. Quando os garantistas repetem que os abolicionistas libertários não possuem respostas para os “crimes”, o que assinalam é que são escravos do universal, carentes de pacotes sistêmicos antes das perguntas. E ainda, mesmo quando lhes são mostradas soluções concretas para situações específicas, isso por vezes não é compreendido enquanto tal, pois a percepção da concretude já se encontra confundida com a do universal, embaralhada no jogo do soberano.

Quem promete fórmulas e fluxos pré-estabelecidos é o sistema de justiça criminal, com a roupagem do universal e do sagrado, produtor de novos soldados do universal, que desprezam a singularidade dos que experimentam o equacionamento da situação-problema, bloqueando a possibilidade de uma resposta-percurso. Termos muito maiores que os recortes jurídicos instituídos e suas consequências terríveis. Muitos anarquistas no passado diriam consequências “criminosas”, e disso é necessário se apartar, pois não nos acrescenta nada de útil, na acepção de que os efeitos de sentido funcionam sobremaneira capturados na retórica jurídica.

A situação-problema e a resposta-percurso ligam-se às heterotopias de percurso, de invenção, de liberação, de valorização da complexidade da vida, não constituem produtos enlatados para serem verticalmente distribuídos a partir de manuais e autoridades atreladas à razão de Estado, ou por soldados que se tornaram extensões do princípio da autoridade e da punição, aglomerados na celebração da servidão universal.

A prisão e seu revestimento jurídico é produção moderna relativamente recente que se elastifica enquanto escrevo e enquanto sou lido, e nas sociedades de controle essa expansão torna-se ainda mais sofisticada quando atua simulando reduções que se convertem em ampliações. Armadilhas, lidas como saídas, mas que são novas entradas.

Muitos dos que compram essas simulações até são opositores da prisão (como prédio), mas são consumidores de discursos baseados em ajustes desvinculados de outros modos de vida, demasiado crentes em conjuntos normativos, e descrentes de percursos singulares ligados à arte de não ser governado.

Não existe uma mesma saída universal para todas as situações passíveis de inserção na linguagem criminal e sua codificação insana. Muitas vezes, nem mesmo é possível encontrar, acessar, criar qualquer saída para uma situação-problema complexa. Mesmo se for o caso, o que é terrível, isso não deve ser mobilizado e absorvido em novos fluxos sabidamente terríveis.

A valorização do percurso não significa que não existam propostas em nível mais macro, e enxerga que a forma como as perguntas são frequentemente colocadas, configura grandes armadilhas. O que definitivamente não pretende é apagar a singularidade.

Dialoga com a compreensão de que um fluxo pré-estabelecido como o atrelado ao poder punitivo é uma enorme aberração que precisa também ser abolida em suas bases, em todos os espaços.

Por isso é árduo explorar o que reveste “a questão criminal” sem falar de sujeito, discurso, poder, linguagem, desejo, cultura etc.

O que é mais fácil (e também mais estéril) é reproduzir o que está posto, ideologias punitivas e moral estadocêntrica, de “saídas” e “respostas” universais. Ideias fixas.

E isso a resposta-percurso intercepta.


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Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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