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Contra a resposta universal da linguagem criminal

Contra a resposta universal da linguagem criminal

“Quando exercemos a crítica, isso não é algo deliberado e impessoal – é, no mínimo com muita frequência, uma prova de que em nós há energias vitais que estão crescendo e quebrando uma casca. Nós negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar, algo que talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos!” –Friedrich W. Nietzsche

A prisão é uma política, uma questão de fé ainda intacta, e sua abolição vinculada à linguagem criminal, é consistente, possível e urgente (no presente).

Notadamente, a linguagem criminal é lanceada nos abolicionismos libertários em inúmeros pontos que se conectam e dialogam entre si; e nesse instante, pretendo focar na sua pretensão de resposta universal (que nem sequer constitui verdadeiramente uma resposta) vinculada ao cárcere (bastante dissecada desde esses horizontes abolicionistas), agora para destacar um problema atualíssimo, que imprime incomensuráveis dificuldades no pensamento ante situações concretas da vida (por vezes trágicas e/ou melancólicas), que é a fé nos combos retilíneos do universal e do sagrado relacionados à centralidade do sistema de justiça criminal e seus fluxos pré-estabelecidos (que reconstituem, em cada replicação sistêmica, direcionamentos no embalo da dinâmica real do poder punitivo e suas linguagens programacionais de sequestro).

Refiro-me às dificuldades e limitações que são construídas e potencializadas pela própria imaginação legitimante e carente de “intelectuais universais” e “respostas universais” a serem oferecidas aos problemas, em cumplicidade com os iluminados condutores de consciências, de coesão construída mediante (e através de) múltiplos sequestros e representações (sem “representados”).

Isso, coroando a verticalidade do princípio da autoridade e sua conexão com os castigos e controles que retroalimentam tudo isso; que incidem amplificando as ressonâncias nas pessoas atravessadas por tais combos de crenças, atreladas à prisão como uma política estéril (que constitui uma questão de fé), verdadeiro divisor de águas para se entender o pensamento de alguém, e o quanto (d)esse alguém é verdadeiramente a favor de liberdades ou não, e que noção de liberdades carrega; o quanto desse alguém encontra-se governado e parasitado pelas categorias em jogo.

Existe uma infinidade absurda de situações absolutamente distintas entre si codificadas na linguagem criminal, que então se propõe a intervir com sua fórmula retilínea prisional nas seleções perpetradas, materializando dinâmicas e fluxos reducionistas, de ressonâncias terríveis na realidade (distantes de qualquer relação com solução de conflitos ou ideia minimamente similar).

Não há resposta universal (inteligente e complexa) possível para as infindáveis situações (distintas e singulares) codificadas na linguagem criminal, em contextos com sujeitos e desejos também distintos, que verdadeiramente atenda ao que promete acerca desse pacote gigantesco de artificialidades comprimidas nessa fórmula; não se estanca verdadeiramente a linguagem criminal dentro da lógica da linguagem criminal, ou prometendo respostas universais alternativas que preservem aquilo que aparentam combater (os combates retóricos e as falsas dicotomias do/no âmbito jurídico asseguram continuidades perniciosas alimentadas pelo universal e seus discípulos).

Existe uma inversão lógica absurda: se está tão acostumado, hipnotizado pela fé nos símbolos e conjuntos de “respostas universais”, tão presos na linguagem do universal, que quando “soluções” absolutamente concretas, reais, próximas e possíveis no presente, são sugeridas nos casos do cotidiano, isso é tratado como loucura, como fuga da realidade, como não-resposta, como “crítica sem solução”, e o que em verdade é uma abolição da linguagem criminal / linguagem-crime no instante, é simplesmente bloqueado, negado, rejeitado de forma assustadora, perpetuando e naturalizando as ressonâncias dessa linguagem oficial (e suas alternativas repressivas) nas subjetividades dos cidadãos (convertidos em polícias), assim engavetando outros mundos possíveis (aprisionados).

A sugestão singular para uma situação-problema é frequentemente ridicularizada de forma circular (entre condicionamentos profundos) da seguinte forma: se calcula rasteiramente sua aplicação universal, que seria terrível se aplicada em todas as situações codificadas como delitos (claro, porque não foi preparada para ser oferecida genericamente para situações absolutamente distintas), e se conclui, assim, que se trata de um absurdo, de algo sem sentido.

Os achatamentos desse senso comum, dessa prisão enquanto política e demais abalos cristalizados, é o que em grande medida explica porque um abolicionista pode falar por 120 minutos sobre “soluções reais” para o presente, e tudo ser encarado como “metafísica”, “idealismo”, “utopia”, “crítica sem proposição”.

Se está tão parasitado (e inventivamente paralisado) pelo universal, por suas extensões sacralizadas e elevadas à condição de imprescindibilidade inescapável, que o fora, ou aquilo que não é uma nova entrada no sistema, e que não opera em sua linguagem religiosa, simplesmente não é entendido, não de forma séria, não sem muita dificuldade.

Em “Abolicionismos e Cultura Libertária” (2017) e “Abolicionismos e Sociedades de Controle” (2018), de formas distintas, são identificados e lanceados condicionamentos e bloqueios que eternizam o massacre da imaginação libertária (sacrificada e permutada em nome dos controles e seus sequestros).

O universal e o sagrado bloqueiam a percepção da singularidade de outros mundos, não apenas a criação de algo novo, mas também a constatação do que já existe no presente, aqui e agora.

Estão tão aprisionados na utopia, no sagrado e no universal, na negação das particularidades e singularidades, nas simulações (d)e coesões forjadas, na fé naturalizada, que interpretam o que fere suas tessituras precisamente como imagem do que são eles próprios; os que pedem proposições e respostas concretas para as situações encontram-se frequentemente tão paralisados que não percebem que essas proposições são feitas em todos os instantes pelos críticos, ainda que não sejam interpretadas como tais, na medida em que existem bloqueios pessoais titânicos que impedem acessos ao que já está sendo entregue, de modo que quem reiteradamente cobra dos outros esse conteúdo “ausente”, por vezes precisa perscrutar em si próprio o que dificulta tanto o vislumbre das proposições ofertadas horizontalmente na mesa do presente (sem autoridades); quem verdadeiramente não entrega nada de positivo em sua equação é a linguagem criminal (uma linguagem essencialmente reducionista).

Muitos apostam suas vidas em proposições para quem perpetra esses bloqueios e inversões, se frustram, e começam a brigar entre si acreditando que falta propor algo na disputa da hegemonia, quando o problema é muitíssimo mais profundo, e não será dissipado com a fé no princípio da autoridade (estruturante do poder punitivo e da linguagem criminal) que promove o arquétipo de Estado, edificação que convenientemente simula retoricamente o controle de técnicas de contenção de sua própria produção, representação e reafirmação.

Para os soldados do universal, sem inventividade e imaginação libertária, concreto é o que nega a complexidade, não demandando rupturas nos lindes instituídos e naturalizados.

Para os imersos nessa linguagem, concreto é o que não é concreto, como “combater a criminalidade”. 

Quando os abolicionistas libertários buscam demolir a linguagem criminal, não se trata de um capricho, mas urgência (possível no presente).

Saúde!


REFERÊNCIAS

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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