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Retardamento de inscrição eleitoral e perturbação/impedimento de alistamento


Por Bruno Milanez


Seguindo na análise dos crimes eleitorais iniciado há algumas colunas, hoje tratamos dos crimes de retardamento de inscrição eleitoral e perturbação ou impedimento de alistamento eleitoral.

O crime de retardamento de inscrição eleitoral está tipificado no art. 292, do Código Eleitoral (negar ou retardar a autoridade judiciária, sem fundamento legal, inscrição requerida, com pena pecuniária de 30 a 60 dias multa), tendo por bem jurídico objeto de tutela a liberdade do exercício de direitos políticos individuais.

Enquadra-se no conceito de menor potencial ofensivo (art. 61, da Lei 9.099/95), sendo admissível a transação penal. Também se admite a suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei 9.099/95). Por se tratar de infração de menor potencial ofensivo, mesmo em hipóteses de condenação transitada em julgado, não há que se falar em inelegibilidade (art. 1º, § 4º, da LC 64/90).

Trata-se de crime próprio, pois a expressão “autoridade judiciária” prevista no tipo penal se refere ao magistrado eleitoral, que detém competência para apreciar – e deferir ou indeferir – os pedidos de inscrição eleitoral. Não apenas o magistrado de primeira instância pode praticar o ilícito, pois o retardo ou negativa de inscrição também pode ocorrer em grau de recurso, como se depreende da análise da regra do art. 45, §§ 7º e 8º, do Código Eleitoral.

O crime é de tipo misto alternativo ou conteúdo variável, de modo que a prática de qualquer um dos verbos nucleares do tipo penal (retardar ou negar a inscrição eleitoral) implica na consumação do crime.

Como todo o crime eleitoral, somente se admite a sua prática na modalidade dolosa. Discute-se se apenas o dolo específico é suficiente para a perfectibilização do crime ou se é necessário o dolo específico, consistente no especial fim de evitar que o cidadão possa exercitar seus direitos políticos. Na medida em que todo e qualquer crime eleitoral deve ser dirigido à tutela de um bem jurídico vinculado ao processo eleitoral – inclusive sob o prisma da liberdade de voto –, deve-se exigir essa finalidade especial para a caracterização do ilícito penal (STOCCO, 2004, p. 672):

“Aliás, a redação do preceito é péssima, mal redigida e equivocada pois o retardamento do pedido de inscrição por parte de autoridade judiciária só por si não pode configurar crime. Se o retardamento não encontrar justificativa e, portanto, caracterizar-se como omissão culposa, diante da negligência do magistrado, ainda assim não há falar em crime. (…) Ainda que o indeferimento de inscrição não esteja devidamente fundamentado ou que a decisão não tenha indicado o dispositivo legal no qual se escorou o julgado ou, ainda, não encontre permissão na legislação de regência, o delito só se caracteriza se o julgador tiver agido com intenção manifesta de prejudicar o requerente, sabendo que a hipótese era de deferimento.”

O crime de perturbação ou impedimento de alistamento eleitoral está tipificado na regra do art. 293, do Código Eleitoral, com pena de detenção de 15 dias a 6 meses ou pagamento de 30 a 60 dias multa.

O delito tem por bem jurídico objeto de tutela o processo eleitoral, sob o prisma da liberdade individual de participação nas eleições. Enquadra-se no conceito de menor potencial ofensivo (art. 61, da Lei 9.099/95), sendo admissível a transação penal. Também á cabível a suspensão condicional do processo (art. 89, da Lei 9.099/95). Por se tratar de infração de menor potencial ofensivo, mesmo em hipóteses de condenação transitada em julgado, não há que se falar em inelegibilidade (art. 1º, § 4º, da LC 64/90).

Em face do princípio da legalidade penal, que dentre diversos aspectos contempla a necessidade de clareza do conteúdo da regra incriminatória, a expressão ‘perturbar’ deve ser considerada inconstitucional, dada a vagueza e a extrema abertura semântica do conceito, não sendo possível conhecer, no ponto e com precisão mínima, o conteúdo incriminador positivado no tipo penal.

A inconstitucionalidade pode ser evidenciada, exemplificativamente, a partir de comparação com a regra do art. 260, do CP, que contempla o crime de impedir ou perturbar serviço de estrada de ferro. Nesse tipo penal, a descrição das condutas que podem ser consideradas como perturbação ou impedimento do serviço – destruir, danificar (inc. I) ou colocar obstáculo na linha (inc. II), por exemplo – garantem ao menos sob o prisma da certeza, a legalidade da regra, o que não ocorre em relação à perturbação de alistamento eleitoral, pois nesse caso não há descrição minimamente adequada de quais condutas seriam consideradas como perturbação para que se considere praticado o crime.

Raciocínio análogo poderia ser aplicado à expressão impedir de qualquer modo a inscrição eleitoral. Tendo-se em vista a enorme abrangência e amplitude do conteúdo, seria possível formular hipótese absurda que, ao menos em tese, enquadrar-se-ia no tipo penal em análise: um cidadão, ao adentrar em um táxi, pede ao taxista que o leve ao Cartório Eleitoral para realizar o alistamento e o taxista se nega a realizar a corrida, tentando demover o cidadão da ideia de realizar a inscrição eleitoral. Em face da completa indeterminação, esse exemplo hipotético caracterizaria, ao menos do ponto de vista do tipo objetivo, a conduta descrita no art. 293, do CE.

Uma possível tentativa de ‘salvar’, sob o prisma da legalidade, o tipo penal em análise seria considerá-lo como crime próprio, em que o sujeito ativo somente poderia ser funcionário público responsável por promover o andamento do procedimento do alistamento eleitoral retarda injustificadamente o alistamento eleitoral, com o objetivo específico de obstar o exercício da liberdade de participação no pleito eleitoral do cidadão. Porém, estar-se-ia em essência criando um novo tio penal, o que em última análise resolve um problema de legalidade mediante a criação de outro problema de igual relevância e intensidade.

Exemplo da extrema dificuldade em se definir o conteúdo exato da incriminação contida no tipo penal objetivo consiste nos comentários ao crime em análise realiados por José Joel Cândido (2004, p. 280):

“A perturbação não precisa impedir; basta que atrapalhe, atrase, dificulte ou embarace o alistamento. A não ser assim, esse verbo-núcleo (perturbar) não teria sentido no texto. É suficiente o dolo genérico para a configuração do crime. Por outro lado, basta que o agente impeça por algum tempo o alistamento para se caracterizar a infração, mesmo que, depois, o ato cartorial venha a se realizar. Há, aqui, mais do que proteção, um certo estímulo da lei ao alistamento. O impedimento deve inviabilizar, no todo ou em parte, o alistamento, para que o agente mereça a censura da norma repressiva.”

Como se vê, fala-se muito mas pouco se diz. E não se esclarece com um mínimo de objetividade o que significa perturbar ou impedir, no contexto do ilícito eleitoral. No mesmo sentido da indefinição é a doutrina de Fávila Ribeiro (1986, p. 503), para quem

“reprime-se no art. 293 a ação que objetiva perturbar ou impedir, por qualquer forma, o alistamento eleitoral. A perturbação focalizada pode consistir em uma variedade de atos que entravem, tumultuem, ocasionem dispersão dos alistandos ou que afetem o próprio funcionamento do serviço de alistamento.”

Contudo, em que pesem as críticas formuladas, caso se entenda pela constitucionalidade do dispositivo, trata-se de tipo misto alternativo ou de conteúdo variado, de modo que a prática de qualquer das condutas (perturbar ou impedir) implica no reconhecimento do crime. Cuida-se ainda de crime comum, que não exige qualidade específica do sujeito ativo para ser praticado. E como todo e qualquer crime eleitoral, somente admite a modalidade dolosa. Na doutrina, entende-se que o dolo genérico é suficiente para a perfectibilização do crime.


REFERÊNCIAS

CÂNDIDO, Joel J. Direito Eleitoral Brasileiro. 11. ed. São Paulo: EDIPRO, 2004.

RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

STOCCO, Rui; STOCCO, Leandro de Oliveira. Legislação Eleitoral Interpretada: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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