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A sangue frio

A sangue frio

A aldeia de Holcomb fica situada no meio dos planaltos de trigo, no Oeste do Kansas, numa área isolada que os demais habitantes do estado chamam “lá para diante”. Perto de setenta milhas a leste da fronteira do Colorado, com um céu azul intenso e um ar transparente, de deserto, possui uma atmosfera que lembra mais o Extremo Oeste do que o Médio Oeste. A pronúncia local tem um sotaque da planície, um nasalado próprio dos rancheiros, e os homens, na sua maioria, vestem calças justas de fronteiriços, chapéus de feltro de aba larga, botas de tacão alto com biqueiras aguçadas. A terra é plana e os horizontes são incrivelmente vastos; os cavalos, as manadas de gado e o branco aglomerado dos silos a erguerem-se graciosamente no céu como outros tantos templos gregos se avistam muito antes de o viajante chegar perto deles. (Truman Capote, A sangue frio)

Esse é o título de um dos textos mais licenciosos do século XX. Inaugura o que a estética literária chamou de “jornalismo literário” (New Journalism) ou “romance de não ficção”.

Truman Capote leu no The New York Times uma notinha singelíssima sobre um assassinato no Kansas. Viajou para lá, pesquisou, entrevistou, escreveu, publicou um fragmento na New Yorker e, finalmente, em 1966, saiu o livro: A sangue frio (In Cold Blood). Sucesso de vendas, ótima crítica, prêmios e filmes dele decorrentes. Consagração!

A trama é a seguinte: em 15 de novembro de 1959 uma família da pacata cidade de Holcomb, no Kansas (EUA), é assassinada por dois homens.

Os Clutter (Herbert, 48; Bonnie, 45; Kenyon, 15; e Nancy, 16) são rendidos e mortos a tiros de espingarda por Richard Eugene Hickock e Perry Edward Smith, que aparentemente pretendiam “apenas” assaltar a família (dada uma informação de penitenciária que os Clutter guardavam dinheiro em espécie no cofre de sua casa).

Investigação policial, prisão e confissão rendem aos assassinos, após o processo, pena de morte por enforcamento, o que ocorre em 14 de abril de 1965.

Com base nessa informação verídica e jornalística – a nota era de poucos centímetros, em pé de página – Capote foi a campo. E escreveu um romance totalmente baseado em fatos reais.

Naquela ocasião e mesmo hoje toda a técnica de Capote foi e é questionada. Segundo padrões jornalísticos, diz-se que o autor tratou informações recolhidas em campo com uma “liberdade intolerável”.

Essa tal liberdade muitas vezes foi confundida (e certa vez até admitida pelo próprio autor) como “imaginação” – no bom e velho preenchimento das lacunas.

É uma questão aberta para dois fatores na criminologia: o problema da verdade no processo e a midiatização do direito penal.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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