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A que deveriam servir as audiências de custódia? 

A que deveriam servir as audiências de custódia? 

Sabe-se que as chamadas audiências de custódia encontram amparo normativo nos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, os quais restaram ratificados pelo Brasil e internalizados no âmbito do direito interno, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos da OEA.  

Pois bem, à ausência de legislação brasileira que desse conta do hiperencarceramento existente (somos o terceiro país que mais encarcera no mundo) e dos nefastos efeitos que a prisão produz, quanto mais nas condições brasileiras, bem como com o intuito de aferição das práticas policiais quando da detenção, prisão ou retenção de qualquer pessoa, através de resolução administrativa, o Conselho Nacional de Justiça estabelece e disciplina procedimentalmente as audiências de custódia, o que, posteriormente vem a ser reiterado no âmbito da medida cautelar concedida nos autos da ADPF 347.  

Dessa forma, as audiências de custódia deveriam servir para focar em duas situações-problema: a necessidade e legalidade da prisão e a legalidade ou ilegalidade das práticas e condições de detenção, retenção ou prisão de qualquer pessoa.   

O foco na necessidade e legalidade da prisão vem exatamente da constatação de contarmos com um percentual acima de 40% do total da população carcerária brasileira que se encontra presa na condição provisória, ou seja, sem condenação, e, conforme algumas pesquisas já teriam mostrado; grande parte desse percentual, após o cumprimento de prisão provisória, ou restaria absolvido, ou com condenação que permitiria a substituição da pena privativa de liberdade por uma pena restritiva de direitos, a qual, evidentemente, não ensejaria prisão, razão pela qual o cumprimento provisório da detenção se mostraria mais gravoso do que a própria condenação.  

Em artigo publicado no Boletim do IBCCRIM de Abril de 2018, Alisson de Lara Romani, Defensor Público em Porto Alegre/RS, dá conta da precária situação das audiências de custódia na Capital Gaúcha, abordando a não apresentação dos flagrados (o que já é uma redução da previsão normativa internacional, a qual fala não apenas nos flagrados, mas de qualquer detido, retido ou preso) para a realização do ato, o qual se dá no interior da Cadeia Pública de Porto Alegre, o que, então, não deveria encontrar justificativa e nem impedimento a tanto.  

Na oportunidade, Alisson aduz que no mês de setembro de 2017, por exemplo, o percentual de não apresentação dos flagrados chegou a 79%, razão pela qual discorre acerca dos instrumentos jurídicos adotados por ele para assegurar a implementação de um direito humano fundamental.  

Isso deveria se aliar a um dado que nos tem assombrado no que diz com o Estado do Rio Grande do Sul. É que em 2014 contávamos com uma população carcerária que girava em torno de 28.000 presos/presas. Ocorre que em 2018, mais precisamente abril, contamos com uma população carcerária que ultrapassa 39.000 pessoas, ou seja, em três anos tivemos um aumento de mais de 11.000 presos/presas, o que representa um percentual de 38,8%.

E atenção, as audiências de custódia foram instituídas na Capital Gaúcha em julho de 2015. Interessante, seria perquirir, então, acerca do por que a população carcerária cresceu tanto, o maior crescimento em uma década, exatamente quando instituído um mecanismo que teria como uma das suas funções o de aferir a necessidade e legalidade da prisão. 

Em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o CNJ, com publicação em 2018, sobre a prisão provisória e audiências de custódia, constatou-se que, conforme expõe Azevedo,1 a proporção de liberdades e prisões em cada Unidade da Federação depende de uma série de questões, tais como: políticas de segurança pública adotadas pelos Estados; cultura profissional e corporativa dos profissionais do sistema de justiça criminal; do retrospecto de utilização de alternativas penais assumidas pelo Judiciário, bem como da disponibilidade e da qualidade das políticas sociais e assistenciais do Poder Executivo de cada estado e município.  

Na ocasião, dos seis estados pesquisados, em todos eles houve crescimento do percentual de presos provisórios no sistema no período de dezembro de 2015 a junho de 2016. No caso do Rio Grande do Sul esse aumento se deu de 34,5% para 38%.  

De acordo com Azevedo, o diagnóstico apresentado com base na observação das audiências buscou evidenciar os gargalos na implementação das audiências de custódia para que elas possam atingir os seus objetivos e surtam efeitos nas situações problema antes elencadas.  

Mas a pesquisa revelou que o espaço de realização dessas audiências em sua grande parte se mostra hostil por contar com um forte aparato de segurança sobre os presos, o que inviabiliza muitas vezes assegurar determinadas garantias fundamentais, como a entrevista reservada com o defensor ou defensora, o uso de algemas sem justificativa, e a ausência de explicações e informações sobre a finalidade da audiência para o custodiado.   

Quanto aos fatores que levam à conversão em prisão preventiva no momento da audiência de custódia, a pesquisa constatou que o tipo de crime parece fortemente condicionado à decisão tomada, sendo o roubo (seguido ou não de morte), o crime em que a prisão é mais frequente, mais até que o homicídio, sem se descartar o tráfico de drogas, o qual é um crime sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas que desperta a preocupação com a manutenção da prisão processual.  

Além disso, outro fator determinante para a decretação da prisão preventiva diz respeito aos antecedentes criminais do acusado, mesmo que sem trânsito em julgado, sendo que a sua existência aumenta consideravelmente as chances de haver a conversão em preventiva.  

A pesquisa também aborda a filtragem racial, dando conta de tratamento mais duro aos detidos negros do que aos detidos brancos, além da atuação dos operadores jurídicos no interior das audiências, dando conta da confusão existente entre os papeis de acusador/fiscal e julgador, haja vista a flagrante proximidade do Juiz e do Promotor de Justiça, bem como do comportamento desrespeitoso destes, muitas vezes, no momento em que os defensores estão apresentando suas versões dos fatos e seus pedidos.  

Essa pesquisa, por certo, merece uma análise muito mais acurada e está à disposição de todos e de todas no sítio eletrônico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entretanto, ela nos serve, conjuntamente com os demais dados aqui elencados, a refletirmos acerca do questionamento proposto enquanto título desta coluna: a que mesmo deveriam servir as audiências de custódia? 

E, talvez, esse questionamento importe em uma análise muito mais profunda, a qual diga com a forma de estruturação do sistema de justiça criminal, bem como das mentalidades que permeiam os operadores que labutam junto a esse mesmo sistema, o que não conseguiríamos fazer nesse pequeno espaço, ficando aqui o convite ao pensar.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Encarceramento e Alternativas Penais no Brasil – Elementos para uma Sociologia da Punição. Revista Eletrônica do Grupo de Estudos em Direito Penal, Ano 01, Volume 01, Março 2018.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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