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O sigilo constitucional protege a ‘comunicação de dados’ ou os ‘dados em si’?

O sigilo constitucional protege a ‘comunicação de dados’ ou os ‘dados em si’? Jogo de palavras!

O art. 5°, inciso XII, da Constituição Federal, estabelece que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Antes de mais nada, conveniente situar que o direito ao sigilo de determinadas informações e dados é corolário lógico do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, do qual deriva a garantia da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. E, para que se proporcione tal garantia, estabeleceu-se o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.

Como o progresso tecnológico e as variadas possibilidades de comunicação interpessoal dos tempos atuais bastante difere da realidade existente quando do processo constituinte do qual resultou a Carta Magna de 05 de outubro de 1988, muitas são as situações que surgem a desafiar os operadores do direito à vista do mencionado dispositivo constitucional.

Uma das situações que suscita debate diz com a quebra de sigilo de e-mails e outras formas de correspondência eletrônica, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. O ponto central da discussão diz com a necessidade – ou não – de prévia autorização judicial para acessar o conteúdo de comunicação eletrônica mantida em arquivos físicos ou virtuais.

Para quem sustenta a desnecessidade de ordem judicial para o acesso ao conteúdo de comunicações efetuadas por troca de e-mails e outras mensagens eletrônicas, o objeto do sigilo assegurado constitucionalmente é a comunicação ‘de dados’ e não os ‘dados em si considerados’. Nesse sentido, costuma-se referir o voto proferido por Sepúlveda Pertence, então Ministro do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n° 418416, julgado em 10.05.2006, tido por paradigmático.

No caso mencionado, cuidava-se de investigação policial, em cujo âmbito cumpriu-se mandado judicial de busca e apreensão, no qual a autoridade judiciária autorizou a apreensão, dentre outros, de equipamentos de informática, sem qualquer menção expressa à possibilidade de acesso a dados ali existentes, relativos a comunicações trocadas mediante e-mails.

No voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence, relator, assentou-se ter inexistido violação ao art. 5°, inciso XII, da Constituição, porquanto não teria ocorrido violação das comunicações de dados, mas sim apreensão da base física na qual se encontravam os dados, mediante prévia e fundamentada autorização judicial.

Malgrado o respeito que efetivamente merece o jurista Sepúlveda Pertence, por tudo quanto representou – e continua a representar – para o mundo jurídico brasileiro, mas a tese por ele sustentada no mencionado voto mais parece um jogo de palavras.

Ora, com todas as vênias, mas a leitura do inciso XII do art. 5° da Constituição Federal não permite limitar-se o alcance da garantia do sigilo à proposição de Pertence. A prevalecer esse entendimento, o sigilo apenas seria assegurado no exato instante que efetuada a comunicação.

Vale dizer, segundo a tese esposada pelo então ministro do STF, uma vez realizada a comunicação (telefônica, telemática ou, atualmente, por intermédio de aplicativos de interlocução interpessoal e outras formas de correspondência eletrônica) e se desvaneceria o sigilo assegurado pela Lei Maior.

Não mesmo.

Há uma evidente violação à garantia constitucional do sigilo das comunicações no acesso ao conteúdo de comunicações telemáticas e correspondências eletrônicas, seja ele efetuado no instante em que se processa a transmissão da comunicação, seja, posteriormente, pela apreensão da base física em que armazenado o conteúdo dos e-mails ou mensagens, desde que inexistente prévia e fundamentada autorização judicial.

Cuida-se de um lance de retórica afirmar-se que a Constituição Federal tutela a ‘comunicação de dados’ e não ‘os dados’ em si considerados. Os dados não existem sem a comunicação que lhes dá vida.

Veja-se que não se está a argumentar pela impossibilidade de acesso ao conteúdo de comunicações eletrônicas para fins de persecução penal. O que estas linhas buscam evidenciar é a necessidade de autorização judicial, prévia e fundamentada, para que as autoridades investigantes possam validamente conhecer o conteúdo de e-mails e outras formas de correspondência eletrônica, seja no instante em que são transmitidos, seja já transmitidos e mantidos arquivados em meio físico ou virtual, porque se trata de formas de correspondência sobre a qual recai garantia constitucional de sigilo.

Exatamente por que se trata de uma garantia fundamental, é que se exige toda a cautela, de modo que sua relativização não signifique o sacrifício daquilo que a Constituição buscou proteger.

Ademais, como já sinalizado, quando promulgada a Carta Constitucional de 1988, não se dispunha das possibilidades de utilização de correio eletrônico e realização de comunicação por meio de aplicativos e outros recursos tecnológicos. A interpretação que preserva a força principiológica da Constituição é aquela que maximiza os direitos e garantias fundamentais do cidadão, não ao ponto de torná-los absolutos, mas para protegê-los de investidas ilegais, arbitrárias e desarrazoadas.

Discussão que tem surgido, é quanto ao acesso ao conteúdo de mensagens trocadas através do aplicativo WhatsApp, para fins de persecução penal, tendo despontado entendimento de que o acesso a conversas mantidas por intermédio do referido aplicativo imprescinde de autorização judicial, mesmo que o celular tenha sido apreendido por ocasião de prisão em flagrante, como recentemente decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus n° 421249/SC, Rel. Min. Reynaldo da Fonseca, julgado em 08.02.2018.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário com Agravo n° 1042075/RJ, abriu-se nova discussão acerca do alcance do art. 5º, inciso XII, da CF/1988, debatendo-se sobre a possibilidade de a Polícia acessar diretamente, e sem prévia autorização judicial, agenda, registro de chamadas e outros dados mantidos em aparelho celular, para fins de investigação criminal, tendo, o relator, Min. Dias Toffoli, em 31.10.2017, reconhecido a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, submetendo esse juízo à apreciação dos demais membros da Corte.

Mencione-se, nessa linha, que o art. 10, caput, da Lei n.º 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), estabelece que “A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas”, sendo que o provedor responsável pela guarda somente poderá disponibilizar acesso aos registros, mediante ordem judicial, segundo prevê o § 1° do referido art. 10.

Já há reações ao considerado voto paradigmático do Min. Sepúlveda Pertence, inclusive, no próprio Supremo Tribunal Federal, como é exemplo a decisão proferida pelo Min. Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário n° 1048340/RN, em 14.02.2018, no qual ficou assentado que, embora seja despicienda ordem judicial para a apreensão de celular, pois os acusados encontravam-se em situação de flagrância, as mensagens armazenadas no aparelho estão protegidas pelo sigilo telefônico, que deve abranger igualmente a transmissão, recepção ou emissão de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por meio de telefonia fixa ou móvel ou, ainda, através de sistemas de informática e telemática.

Ao contrário do que afirmam alguns, sustentar que o sigilo garantido constitucionalmente somente seja afastado mediante prévia e fundamentada decisão judicial, não se trata de “defender a impunidade”, mas de assegurar-se que a atividade de persecução penal se desenvolva no mais absoluto respeito às garantias e direitos individuais.

Como diz o Min. Marco Aurélio:

A sociedade não convive com o atropelo a normas reinantes. O desejável e buscado avanço social pressupõe o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. É esse o preço a ser pago – e é módico, estando ao alcance de todos – por viver-se em um Estado Democrático de Direito.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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