Releitura constitucional do sigilo da investigação criminal

Releitura constitucional do sigilo da investigação criminal

A nova ordem constitucional brasileira, fundada em valores e princípios democráticos, impõe uma releitura do sistema jurídico de modo a adequar todos os institutos ao Estado Democrático de Direito com seguro nível de concretização de direitos fundamentais e respeito ao cidadão. Portanto, resta inquestionável que toda a estrutura do processo penal, que pela própria essência implica limitações à liberdade, patrimônio e outros direitos essenciais do homem, seja revista a partir deste foco.

Nesta linha, a fase de investigação preliminar, essencialmente de atribuição da Polícia Judiciária, não deve estar de fora do devido processo (procedimento) legal constitucional. O instrumento investigatório constitucional não é compatível com o modelo inquisitório medieval, marcado pelo sigilo irrestrito e outras características radicais. Nesta linha, importante analisar em que medida o sigilo é necessário ao inquérito policial (principal instrumento de investigação criminal) e como pode ocorrer a compatibilização com o direito de defesa.

Desde a promulgação da Constituição de 1988 a assistência do advogado é garantida como um direito fundamental do “preso” (art. 5º, LXIII). A Súmula Vinculante 14 do STF, em nome do exercício do direito de defesa, garante ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos investigatórios já documentados. Na mesma direção, seguiu o legislador infraconstitucional (Lei 13.245/16 que alterou o Estatuto da OAB) no sentido de garantir, como prerrogativa do advogado, participação da defesa técnica no curso da investigação criminal, desde que não comprometa a eficiência, eficácia ou finalidade das diligências.

Igualmente, importante observar que, com o advento do atual texto constitucional e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito, o sigilo do inquérito policial, além de interesse da investigação e da sociedade, passou a ser instrumento de preservação do próprio investigado contra exposição à estigmatização da investigação criminal. Assim, revela-se a dupla função do sigilo: garantista (preserva o indiciado) e utilitarista (assegura a eficácia da investigação). Importante registrar que no Estado de Direito os fins não justificam os meios, não podendo existir um “Estado-marginal” ou um “Estado de exceção” definitivo (NICOLITT, 2010).

Ademais, o inquérito policial não possui a publicidade inerente ao processo judicial, ao contrário, tem o sigilo como uma de suas marcas. Não obstante possuir finalidade própria e também ser instrumento assecuratório de direitos, imprescindível à manutenção do Estado Democrático, tradicionalmente o inquérito é estudado como um procedimento administrativo, inquisitivo e preliminar à ação penal (NUCCI, 2014).

O fato é que os institutos ligados à persecução penal não podem ser analisados a partir de características absolutas e imutáveis, sob pena de se tornarem meios violadores dos próprios valores constitucionais. A título de exemplo: nem o processo judicial desconhece o sigilo nem o inquérito policial desconhece a publicidade.

Ocorre que, há casos em que o elemento surpresa é essencial à efetividade da investigação. O inquérito visa a coleta de elementos informativos de materialidade e autoria delitiva. Neste sentido, de acordo com o art. 20 do CPP, o delegado assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. Assim, é natural que parte do trabalho da Polícia Judiciária seja blindado pelo sigilo necessário à investigação. Ademais, como visto, a publicidade pode sofrer limitação inclusive na fase processual (LIMA, 2015).

Portanto, importante distinguir o sigilo externo (visa evitar exposição de dados essenciais do inquérito ao público em geral através da mídia) do sigilo interno das investigações (visa limitar o acesso do indiciado ou advogado aos autos da investigação) (TÁVORA; ALENCAR, 2016).

O sigilo externo, essencial ao inquérito policial, abarca situações em que a publicidade das investigações pode causar prejuízo ao esclarecimento do crime, além de violar direitos personalíssimos do investigado como a imagem, a honra e a privacidade. Este sigilo está relacionado às pessoas estranhas à investigação como é o caso da mídia, não atinge o Poder Judiciário e o Ministério Público. Também não atinge o advogado em relação às diligências já concluídas e documentadas. O sigilo externo pode ser afastado nas hipóteses em que o interesse da coletividade se sobrepor ao interesse individual do investigado, tornando-se a divulgação um importante elemento favorável à investigação.

O sigilo externo, invocado para proteger a intimidade dos investigados, não pode ser arguido no sentido de proibir acesso a um dos advogados ao material investigatório já documentado. Neste caso, havendo mais de um investigado com diferentes defensores, o delegado deve adotar as medidas necessárias para que a defesa tenha acesso a pelo menos o material concluído e documentado referente ao seu cliente (STF, HC 88190).

De outro lado, o sigilo interno, inerente à própria eficácia da medida investigatória, relaciona-se com os sujeitos envolvidos no procedimento, justificando a não comunicação da diligência em andamento ao investigado e/ou advogado. Caso contrário, a eficiência da investigação seria comprometida (LIMA, 2015). Portanto, a eficácia da atividade desenvolvida pelo Estado-investigação justifica que a defesa não tenha acesso aos procedimentos investigativos ainda em andamento. Contudo, o acesso aos autos do inquérito deve ser garantido tão logo se conclua as diligências em questão. Este sigilo não se aplica ao juiz e ao Ministério Público.

Em relação ao advogado, tem-se o sigilo interno parcial quanto às citadas diligências em andamento e ainda não documentadas. Quando se fala em sigilo interno total, o acesso não é permitido nem ao advogado denotando, caso a medida não seja imprescindível à eficiência, eficácia ou finalidade das diligências (art. 7º, §11, da Lei n. 8.906/94), sistema de perversa inquisição (NICOLITT, 2010), motivo pelo qual justifica-se a edição da Súmula Vinculante 14, pelo STF, e as recentes alterações no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil.

De acordo com a jurisprudência do STF acerca da compatibilização entre a publicidade necessária ao exercício do direito de defesa e o sigilo imprescindível à investigação criminal tem-se que, a partir da formalização documental do resultado da diligência investigatória que corria em sigilo para garantir o sucesso da medida vislumbra-se o marco em que o sigilo não é mais justificável em relação ao indiciado e ao seu defensor (STF, HC 88190).

A citada súmula não garante acesso ao advogado às diligências ainda em andamento, ou seja, ainda não concluídas e documentados. Assim, havendo risco de comprometer as investigações, o delegado poderá limitar o acesso do advogado (STF, RCL 22062).

Em relação ao sigilo previsto na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), em recente julgado a segunda Turma do STF entendeu pela compatibilidade com teor da Súmula Vinculante 14 (STF, RCL 22009). De acordo com o Supremo, o termo de colaboração e os respectivos depoimentos estão sob a égide do estrito sigilo, com acesso garantido, após formalização do inquérito policial, ao Juiz, Ministério Público e Delegado de Polícia. Neste caso, no que diz respeito ao exercício da defesa, o advogado terá acesso aos elementos de prova já documentados mediante autorização judicial (art. 5º, §2º, Lei 12.850/2013).

O exercício do direito de defesa deve ser efetivado dentro das especificidades inerentes ao inquérito policial. Não se pode falar em exercício pleno do contraditório e ampla defesa nos mesmos moldes desenhados à fase acusatória do processo judicial. Entretanto, a investigação preliminar não pode ser óbice à concretização do devido processo (procedimento) legal próprio da fase administrativa (de finalidade judicial). Assim, não é possível falar em contraditório absoluto, haverá hipóteses em que a participação da defesa deverá ocorrer em momento oportuno, mas deverá sempre ser assegurada, ainda que de forma diferida. Nesta direção, segue entendimento do próprio STF:

“(…) Intimar o investigado da decisão de quebra de sigilo telefônico tornaria inócua a decisão. Contudo, isso não significa a ineficácia do princípio do contraditório. Com efeito, cessada a medida, e reunidas as provas colhidas por esse meio, o investigado deve ter acesso ao que foi produzido, nos termos da Súmula Vinculante nº 14 (…) Trata-se de um contraditório diferido, que permite ao cidadão exercer um controle sobre as invasões de privacidade operadas pelo Estado.” (Inq 2266, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 26.5.2011, DJe de 13.3.2012).

Do exposto, conclui-se imprescindível a discussão acerca da filtragem constitucional de toda persecução penal, inclusive a fase investigativa, com os aspectos relacionados à concretização de direitos fundamentais. Igualmente, deve-se fixar a ideia de que, além de instrumento investigatório e preparatório de eventual ação penal, o inquérito policial também é uma garantia do cidadão contra arbitrariedades e acusações levianas. Entretanto, não se pode perder de vista a eficácia do trabalho do Estado-investigação em prol de toda coletividade.

Assim, surgem hipóteses em que a publicidade das investigações pode gerar prejuízos à própria investigação ou até mesmo a interesses maiores da coletividade. São casos em que, por ainda não estarem concluídas, a publicidade das diligências em curso pode frustrar o objetivo legalmente almejado.

Portanto, tem-se o importante papel do Delegado de Polícia, no exercício de carreira jurídica de Estado, sopesando os direitos e garantias apresentados pelo caso concreto, fundamentadamente, estabelecer o sigilo das investigações até o momento adequado em que o exercício da defesa possa ser realizado, ainda que de forma diferida. Destarte, para garantir o êxito das diligências em andamento, o delegado tem o poder-dever de restringir o acesso da defesa ao inquérito policial em relação aos atos investigatórios ainda não formalizados.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 88190. Relator: Ministro Cezar Peluso, Segunda Turma. Brasília, 29 de setembro de 2006. <Disponível em www.stf.gov.br> Acesso em: 29 de outubro de 2016.

________. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 22062. Relator: Ministro Barroso, Primeira Turma. Brasília, 15 de março de 2016. <Disponível em www.stf.gov.br> Acesso em: 29 de outubro de 2016.

________. Supremo Tribunal Federal. Reclamação n. 22009. Relator: Ministro Teori Zavascki, Segunda Turma. Brasília, 12 de maio de 2016. <Disponível em www.stf.gov.br> Acesso em: 29 de outubro de 2016.

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 3. ed. rev. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014.

TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11. ed. rev. amp. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.