A (in)constitucionalidade da quebra administrativa de sigilo fiscal
Considerando-se que através da informação pode-se obter dados particulares sobre a vida e a intimidade das pessoas, a manipulação e o acesso, bem como a divulgação de informações é limitada pela proteção à vida privada do cidadão. Nesse sentido, o sigilo fiscal, entendido como a forma de proteção existente para assegurar a inviolabilidade das informações fiscais do contribuinte, deve ser revisitado à luz do atual estado de coisas, qual seja, a comunicação eletrônica de dados.
As informações fornecidas pelo contribuinte ao agente fiscal são de foro íntimo, visto compreenderem desde o cadastro pessoal até a mais detalhada descrição do patrimônio dos indivíduos, pelo que o sigilo fiscal tem previsão constitucional – sendo um desdobramento da proteção à intimidade – e legal, estando insculpido nos artigos 5º, inciso X, da CF e 198, do CTN.
Ademais, os entes federativos podem trocar informações fiscais entre si com finalidades de fiscalização e controle. Entretanto, esses entes precisam ter acordos firmados para realizar esta troca de informações, devendo tal acordo prever que o Fisco que receba a informação saiba do seu caráter confidencial e das penalidades nas quais ele pode incorrer no caso de fazer mau uso dessas informações. O acordo de troca de informações não pode permitir que outras pessoas, além das pessoas autorizadas, possam ter acesso à informação. Assim diz o CTN:
Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
Não obstante a existência de proteção às informações fiscais e da possibilidade de troca de informações entre entes políticos, é facultado à administração tributária, desde que respeitados os direitos individuais e em conformidade com a lei, identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes (CF, 145, parágrafo 1º). Assim, para que haja o acesso aos dados fiscais de determinada pessoa investigada, necessário se faz a expressa individualização do investigado e do objeto da investigação, bem como a fundamentação da indispensabilidade dos dados fiscais solicitados para a condução da investigação.
Nesse sentido, a violação de informações fiscais deve ser penalizada duramente, já que o acesso indevido e o vazamento de tais dados podem facilitar a ação de criminosos e mesmo colocar em risco a vida do contribuinte exposto, já que podem ser utilizados como instrumento de chantagem e argumento para resgates em eventuais sequestros, pelo que, em regra o acesso a informações fiscais deve ser precedida de autorização judicial.
O vazamento de informações sempre fora motivo suficiente para a demissão de servidores públicos que violam o dever de sigilo; além disso o Governo chegou mesmo a anunciar, por meio do Ministério da Fazenda, um pacote de medidas para aumentar a segurança no acesso a informações sigilosas, dentre as quais, demissão sumária ao funcionário que empresta sua senha de acesso a terceiros, penas mais rigorosas aos servidores infratores, penalidade ao servidor que acessa informações fiscais imotivadamente, dentre outras.
Nesse contexto vale destacar que, apesar de a autorização judicial ser a regra para a “quebra” do sigilo fiscal, há previsão nas Leis Complementares 104/2001 e 105/2011, que alteram o CTN, para que seja permitida a divulgação desses dados fiscais pela Fazenda Pública mediante simples solicitação de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, havendo apenas a necessidade de ser comprovada a instauração de regular processo administrativo objetivando investigar o sujeito passivo.
A nosso ver, de forma preliminar, tal regra nos parece inconstitucional, não obstante a jurisprudência do STF – incialmente voltada também à inconstitucionalidade – tenha sido alterada para aceitar tal situação. Vejamos.
Em 2011 o STF se pronunciou nos autos do RE 389.808/PR, que tratava de quebra de sigilo bancário no sentido de afastar a possibilidade de acesso aos dados sem ordem judicial. Vejamos:
SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal.
Não obstante tal decisão, interessante relembrar a discussão realizada pelo STF no tocante ao objeto de proteção do artigo 5º, inciso XII da CF que determina a inviolabilidade do sigilo das comunicações de dados, entre outras, salvo por ordem judicial, dentro dos moldes previstos em lei, onde se definiu que “a expressão ‘dados’ não deve ser entendida como o objeto da comunicação, mas sim uma modalidade tecnológica de comunicação resultante do desenvolvimento da informática”, pelo que “se o sigilo acoberta apenas a comunicação de dados, os dados estáticos, armazenados na máquina, não estariam acobertados pela inviolabilidade constitucional”.
Nesse diapasão, para o STF, nos autos desse recurso, o objeto protegido no direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas a sua comunicação restringida, sendo que a troca de informações privativa é que não pode ser violada por sujeito estranho à comunicação, não estando resguardados, pelo texto constitucional, os dados estáticos, armazenados na máquina (!!!!!)
Ainda nesse “liquidificador” podemos acrescer outro entendimento do STF, qual seja, aquele externado no julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral (RE 601.314), onde, por 9 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal decidiu ser constitucional a Lei Complementar 105/2001 que permite aos órgãos da administração tributária quebrar o sigilo fiscal de contribuintes sem autorização judicial, já que, no entender dos Ministros, a norma não configura quebra de sigilo bancário, mas sim transferência de informações entre bancos e o Fisco, ambos protegidos contra o acesso de terceiros, tendo sido vencidos no julgamento os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio e, ficando, com esta nova decisão, modificado o entendimento adotado em 2010, no julgamento do RE 389.808.
Com a devida vênia, ousamos divergir dos Ministros vencedores e acompanhar a fundamentação do voto do Ministro Marco Aurélio que entendeu pela necessidade de ordem judicial para que a Receita Federal tenha acesso aos dados bancários dos contribuintes, já que embora o direito à intimidade e à privacidade não tenha caráter absoluto, isso não significa que possa ser desrespeitado por qualquer órgão do Estado, reafirmando-se a tese de que a quebra de sigilo deve se submeter ao postulado da reserva de jurisdição, só podendo ser decretada pelo Poder Judiciário, que é terceiro desinteressado, devendo sempre ser concedida em caráter de absoluta excepcionalidade, sob pena de, em pouco tempo, não ser mais necessária a quebra de sigilo para acesso a informações de suma relevância, pois que as decisões do STF vem demonstrando caráter de absoluta flexibilização e desproteção ao direito fundamental da privacidade e, por via oblíqua o da dignidade.
Vejamos como os órgãos administrativos se comportam a partir dessa nova visão do STF. Oremos!
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