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Simular a contenção do poder é o segredo da dominação

Simular a contenção do poder é o segredo da dominação

“Estamos cercados pelos mortos que ocupam posições de poder porque, de maneira a obter esse poder, é necessário que morram.”  – Charles Bukowski

O título “Simular a contenção do poder é o segredo da dominação” remete a uma brincadeira com frase de Luís Alberto Warat: “Simular a unidade é o segredo da dominação.” (WARAT, 1985 p. 60), e assunto da coluna anterior: a simulação de contenção conectada ao Direito Penal e sua fantasia de contrapoder (naturalizada ainda que como dever-ser), pelos que, apesar de bem reconhecerem a falsidade de certos referenciais, seguem incapazes de abandoná-los, orbitando e integrando a mesmice dos discursos jurídicos que ensaiam combater (sem reinvenção crítica liberadora).

As redes de promessas desses referenciais jurídicos se estabelecem e se sustentam, na medida em que aprisionam e bloqueiam percepções do que efetivamente são, e de saídas fora da linguagem adotada; se atrelam às liberdades de papel e visam ocultar ao máximo possível que, em realidade, e todos os dias, “a palavra do poder engole o poder das palavras que supostamente nos protegem (…)” (PIRES, 2015, p. 71).

Sobre a simulação do contrapoder, da contenção, das liberdades de papel, das palavras que supostamente resguardam os cidadãos (conceito encarcerador), da ciranda dos direitos (e dos deveres), sobre todo esse turbilhão de discursos emanados, é impossível aferir o estrago, das múltiplas capturas em tantas histórias tragadas e absorvidas nos fluxos repressivos, consumidas com aval jurídico. Resulta impossível calcular a imensidão dos sofrimentos e todas as redes de violências alimentadas; trata-se de cálculo sem dúvidas impossível.

Mas o que se pode aqui apontar, com bastante clareza, é a expansão dos aprisionamentos (e monitoramentos nas sociedades de controle) que se dão paralelamente às movimentações de esquerdas e direitas legitimantes do castigo e da autoridade.

A prisão como poderosa política segue se expandindo na medida em que o mundo da retórica lanceado por AUGUSTO (2018) é alimentado pelos cidadãos que, paradoxalmente, acreditam em mais símbolos e referenciais falsos para suprir as terríveis ressonâncias, precisamente abrangentes desses mesmos símbolos e referenciais falsos bombardeados (CORDEIRO; PIRES, 2017).

Nas sociedades de controle seguimos aprisionados, reivindicamos as senhas do poder, e a retórica dos direitos também se converte em senha para a perpetuação da tortura intrínseca atrelada ao sistema de justiça criminal e suas prisões.

ZAFFARONI (2013), no decorrer da obra En busca de las penas perdidas. Deslegitimacion y Dogmatica Juridico-Penal (penas que infelizmente foram encontradas por ele, como lamentam muitos abolicionistas), sublinha elementos pertinentes, reiterando a falsidade indiscutível dos discursos jurídico-penais (com foco desde nossas margens):

 “El discurso jurídico-penal se revela como falso en forma innegable (…) En realidad, siempre se ha sabido que el discurso jurídico-penal latinoamericano es falso.” (ZAFFARONI, 2013, p. 17-18).

O penalista argentino, na passagem entende que a permanência dessas produções repressivas não se atribui (ao menos não exclusivamente) pela má-fé ou formação autoritária, o que seria apontado como resultante de um simplismo que negligencia como os que se colocam como “progressistas”, reproduzindo esses discursos jurídicos notadamente falsos, o fazem por uma razão: porque não desfrutam de outras alternativas na defesa dos que caem nas engrenagens do referido sistema.

Enquanto se convence da imprescindibilidade de replicações sabidamente falsas, que simulam a busca de contenções ingenuamente assumidas como possíveis dentro da lógica do tribunal (verdade do soberano como sublinha Edson Passetti) e da linguagem criminal, se negligencia o avanço avassalador desse “triturador de existências” visualizado por AUGUSTO (2013a, 2013b), que massacra corpos e amontoa-os como lixo; alguns deles até como medalhas estatais, existências sequestradas pela linguagem criminal conectada à prisão como uma política abrangente intrincada à dinâmica do poder punitivo, e que não se limita à prisão-prédio, nem é estancada pelo mundo da retórica e dos falsos referenciais perseguidos pelos juristas.

Embora aqui não se caia no conto fechado extraído de Zaffaroni, ao menos o argentino, em seus melhores escritos antes de se acastelar em certas dicotomias e produções do senso comum, recorrentemente tecia ressalvas e contundentes críticas aos discursos jurídicos (mais que inegavelmente falsos, absolutamente conectados às continuidades e aprimoramentos repressivos), reproduzidos também no coroamento de um dever-ser apaixonadamente sustentado por atores do sistema de justiça que integram simulações de resistências constitucionais, legitimantes dos aprisionamentos no século XXI e perpetuação da prisão como política, entusiastas de seus ingredientes, entre amabilidades programadas largamente apontadas no Brasil com pensadores contemporâneos como Edson Passetti e Acácio Augusto, que identificam, com singular complexidade, subsolos anteriores ao que se entende como “prisão” pelo senso comum (inclusive criminológico crítico).

Mesmo os que desvelam as redes dos discursos jurídicos falsos seguem orbitando de forma complacente os limites instituídos, enquanto simulam (muitos acreditam, claro) atuarem como forças destoantes, operando como soldados obedientes às falsas dicotomias dos fluxos repressivos e suas respectivas polarizações paralisantes.

O que até pode ser fantástico, exemplificativamente, para galgarem cargos e ocuparem espaços, no embalo do mítico empoderamento cool e seu alpinismo que promete redesenhos e transformações nos fluxos repressivos; mas não só as forças que assim ascendem não se traduzem automaticamente em ativadores e fornecedores das migalhas prometidas aos seus apoiadores entusiasmados (o que se conecta aos mitos da representação e participação tensionados no livro “Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos”), como frequentemente essas forças se convertem em novas estrelas repressivas, ou, em cenários menos desastrosos, apenas mais jogadores excêntricos do tabuleiro: jogadores domesticados e absorvidos, defensores dos poderes estabelecidos, “juristas da resistência”, preocupados previsivelmente com a Constituição rasgada aqui e ali (como se repete), mas incapazes de fomentarem movimentações maiores, que traduzam suas revoltas (se é que existem, o que remete a outro grande problema) ante o mundo sedimentado das autoridades e seu princípio conectado à punição.

Mesmo ante os horrores perpetrados e vislumbrados, sonham cegamente com o mundo das autoridades e reafirmam a possibilidade de redesenhos e reformas nesse aludido mundo, reciclando suas produções e promessas na atualidade.

Através da hipnótica atração da democracia representativa, devaneiam embriagados na eterna espera de encontro/formação dos iluminados “bons condutores de consciências”, capazes de positivamente encarnarem a razão de governo e de Estado.

A cultura libertária só existe associada e possibilita, mais que a expressão de uma vergonha diante do mundo, a afirmação de viver diferentemente e contra esse mundo.” (AUGUSTO, 2013b, p. 128).

Nas sociedades de controle, se indaga se existe saída que não seja em verdade entrada (PIRES, 2018), se existe fora, se estamos todos presos de forma irremediável nessas redes de poderes e controles; presos nesse pêndulo funcional ao poder, autoridades e suas hierarquias, com produções intrincadas simulando um contrapoder que, sustentam, poderia ser melhorado (na prática repaginado, redimensionado para a expansão e autopreservação), a exemplo do que orbita o Direito Penal.

Se os que indagam essas e outras coisas, seguirem objetivamente paralisados e subjetivamente parasitados pelos lindes instituídos dos discursos jurídicos sabidamente falsos, sem abrir mão de seus referenciais e linguagem, crença nos castigos e promessas enquanto referenciais, ridicularizando reinvenções e culturas libertárias (CORDEIRO; PIRES, 2017), a resposta é mais que negativa, e a versatilidade e inventividade dos controles seguirá abarcando aprimoramentos repressivos, entre aprisionamentos, monitoramentos, capturas, absorções, domesticações e massacres.

As possibilidades contra a codificação da linguagem criminal, sua dinâmica e ressonâncias, não se iniciam e nem se esgotam juridicamente, como a prisão não remete a um prédio conectado ao solo.

Para os que atuam no sistema de justiça criminal e almejam estancar para ontem os aprisionamentos, o mínimo que se espera é que não disseminem discursos escancaradamente cínicos dos referenciais estruturantes de legitimação (e é preciso reconhecer que há advogados que se esforçam nesse sentido, atentos às ressalvas e problemas abrangentes de si); e que não comemorem prisão alguma.

Sobre demandas por encarceramento de VIPs, a prisão de Lula, Cabral, Cunha ou qualquer estrela repressiva (como presa da vez), não apaga os problemas que nos devoram, como já exaustivamente explicado noutros escritos.

Seguir orbitando essas demandas é também seguir participando complacentemente nos fluxos repressivos: em verdade, seguir paralisado para a complexidade, como um soldado obediente aos fluxos nas sociedades de controle; entre produções de subjetividade eternizadas na perseguição das simulações do mundo jurídico e suas liberdades de papel.

Saúde!


REFERÊNCIAS

AUGUSTO, Acácio. Prefácio. In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

AUGUSTO, Acácio. Política e polícia: Cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2013a.

AUGUSTO, Acácio. Política e antipolítica. Anarquia contemporânea, revolta e cultura libertária. Tese de doutorado (ciências sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013b.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

PIRES, Guilherme Moreira. A palavra do poder que engole o poder das palavras. In: BORGES, David; CEI, Vitor (organizadores): Brasil em Crise: o legado das jornadas de junho. Vila Velha, ES: Praia Editora, 2015.

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdade Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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