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Sintomas de uma democracia em crise (?): o legado autoritário e sua relação com as violações de direitos no sistema penal brasileiro (Parte 1)

Por Felipe Lazzari da Silveira

Zaffaroni está coberto de razão quando denuncia que o sistema penal promove um genocídio.[1] Não é um exagero! Inúmeros trabalhos científicos comprovam empiricamente tal afirmação, demonstrando que o sistema punitivo possui como “clientela preferencial” os indivíduos pertencentes aos estratos mais vulneráveis da população, normalmente pessoas pobres ou identificadas com determinadas minorias.[2] É de conhecimento comum que os indivíduos mortos em “confrontos” com a polícia ou pelas violências do cárcere pertencem a um grupo social bem determinado, grupo este que, muitas vezes, dependendo dos interesses políticos em jogo, é alargado devido à criminalização de alguns movimentos sociais.

Não há radicalismo algum em dizer que quando os cidadãos são alcançados pelas malhas do sistema penal, seja por ser considerado suspeito de ter cometido uma conduta delituosa ou por estar contestando o poder político (principalmente nas manifestações de rua), incorrem em grande risco.[3] O caso brasileiro é rico em exemplos, basta lembrar dos jovens cotidianamente executados pela polícia nas favelas cariocas, das mortes que ocorrem nos cárceres insalubres e superlotados,[4] bem como de outros episódios igualmente lamentáveis, como o massacre dos trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás no ano 2000[5] e as recentes agressões sofridas pelos professores que se manifestavam por melhores condições de trabalho em Curitiba.[6]

Evidentemente, em um contexto marcado pelo recrudescimento do controle penal, fenômeno ensejado por diversos fatores, como a consolidação do modo de vida hiper-consumista,[7] o ciclo de insegurança e medo fomentado pelos mass media,[8] e também pelas “emergências” resultantes desse cenário, o problema da violência estatal tende a se agravar. É que a dinâmica do recrudescimento do controle, que viabiliza essa violência, se alimenta sobretudo do clamor social por mais segurança e punições, demandas que são prontamente “capitalizadas” pelos “políticos” identificados com os movimentos de lei e ordem, que acabam tratando das questões referentes a criminalidade exclusivamente através de políticas e medidas destinadas a endurecer ainda mais o sistema, ações que normalmente geram mais violência e resultam ineficazes, na medida em que desconsideram a complexidade do problema.

Ocorre que o problema da violência do sistema penal brasileiro possui algumas peculiaridades que tornam o quadro ainda mais grave do que o verificado em outros países. O trato da criminalidade no Brasil não se difere apenas pela brutalidade, mas principalmente pelos fatores que viabilizam as contínuas violações de direitos fundamentais, ou seja, pela cultura da violência[9] e pelo autoritarismo que seguem arraigados em nossa sociedade, sobretudo nas instituições de segurança pública e no campo jurídico. Em suma, nossa hipótese é no sentido de que, somado aos problemas inerentes ao nosso tempo e da nossa frágil democracia em crise,[10] o legado autoritário[11] é decisivo para que o sistema penal brasileiro se torne cada vez mais letal, seja na fase policial, judicial ou na execução da pena, sobretudo quando o indivíduo absorvido por suas malhas corresponde ao estereótipo do “inimigo”.

Não podemos deixar de reconhecer que mesmo a Constituição Federal de 1988 tendo incorporado todo o arcabouço de princípios e instrumentos de proteção dos direitos humanos estabelecidos pelos tratados internacionais, as violações em nosso sistema penal seguem ocorrendo em níveis elevados[12] e em moldes muito semelhantes aos verificados no passado, sobretudo durante a Ditadura. Naturalmente, diante de um processo de transição democrática incompleto, ou seja, da ausência de medidas referentes à Justiça de Transição, a simples promulgação da Carta Magna, não foi suficiente para neutralizar a violência e o autoritarismo dos períodos autoritários.

 Quem se debruça sobre o tema sabe muito bem que toda “bala” disparada pela polícia nas execuções de suspeitos, todo decreto de prisão mal fundamentado que autoriza a constrição da liberdade de um cidadão sem que haja necessidade, toda a morte de preso diante da negligência estatal, e até mesmo a aceitação dessas violações por parte da população é, de certo modo, impulsionada pelo legado autoritário ainda presente, mesmo em regime democrático.[13] Apesar do estereotipo do “inimigo” ter assumido diversas formas ao longo da história, é possível concluir que o sistema penal brasileiro mudou muito pouco após 1985, afinal, segue cada vez mais recrudescido e violando os direitos dos cidadãos através de práticas como torturas, prisões arbitrárias (aqui me refiro aos flagrantes forjados pela polícia e também aos decretos de prisão desnecessários) e execuções. É preciso refletir, por fim, que a tortura do pedreiro Amarildo no Rio de Janeiro ou o modo como alguns processos criminais rumorosos (normalmente os resultantes de “operações policiais” espetaculares) vêm sendo conduzidos não são casos isolados, pois, a realidade demonstra que todos os dias muitos cidadãos são violentados pela polícia, presos preventivamente sem necessidade ou condenados mesmo na ausência de provas robustas ou com base em “provas” ilícitas.

Diante disso, é imprescindível analisar o modo como o a cultura da violência e o autoritarismo se enraizaram em nossa sociedade e instituições, bem como os fatores que possibilitaram que esses resquícios do passado autoritário cruzassem o tempo, comprometendo a nossa democracia e tornando o nosso presente uma mera repetição do passado, o que faremos na segunda parte do presente artigo, texto que será publicado neste mesmo espaço dentro de poucos dias, e que o nosso leitor desde já fica convidado a acompanhar.

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[1] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Estructura Basica del Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009. p. 31.

[2] As pesquisas realizadas por Castilho (CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Criminologia crítica e a crítica do direito penal econômico. In: ANDRADE, Vera Pereira de Andrade (org.). Verso e Reverso do Controle Penal – (Des)Aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Volume I. Florianópolis: Boiteux, 2002.) e por Barreto (BARRETO, Fabiana Costa Oliveira. Flagrante e prisão provisória em casos de furto: da presunção de inocência à antecipação da pena. São Paulo: IBCCRIM, 2007.) sobre a prisão preventiva, demonstram que o sistema penal realmente tem como “clientela preferencial” as pessoas jovens, pobres e com pouco grau de instrução, ou seja, os membros dos estratos mais vulneráveis da população.

[3] Segundo Sulocki, em uma sociedade regida pelo discurso da segurança e ordem, “Àqueles que por ventura tentem demonstrar sua insatisfação atos atentatórios a esta ordem, o Estado, organização especial da força, e o governo, domínio do político, assegurarão a neutralização destes indivíduos lançando mão do sistema punitivo, agora como instrumento do direito penal do inimigo.” (SULOCKI, Victória-Amália de Sulocki. Autoritarismos presentes: Biopolítica, estado de exceção e poder soberano. In: Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Org:PRADO, Gerado; Malan, DIOGO. Col. Matrizes autoritárias do processo penal brasileiro. N. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 108.

[4] Sobre o péssimo estado das prisões no Brasil, podemos utilizar como paradigma o caso do Presídio Central de Porto Alegre, cuja deplorável situação diante da negligência estatal fez com que as Entidades que compõem o Fórum da Questão Penitenciária oferecessem uma representação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando as graves violações de direitos que ocorriam cotidianamente naquele ergástulo. Saiba mais em: < http://www.ajuris.org.br/2013/05/31/representacao-presidio-central/>.

[5] Para saber mais sobre o massacre de Eldorado dos Carajás, acesse aqui.

[6] Para saber mais sobre as agressões sofridas pelos professores que se manifestavam por melhores condições de trabalho no Paraná acesse: < http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/professores-sao-agredidos-pela-policia-no-parana/>.

[7] LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2007. p. 44.

[8] Ver BUDÓ, Marília De Nardin. Mídia e Controle Social. Da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

[9] Segundo Souza, o autoritarismo em uma sociedade caracteriza-se pela recusa em relação à diferenciação e à individualidade, bem como pela busca da homogeneidade social, o que faz com que as minorias acabem sendo rejeitadas em face de um modelo político, social e cultural idealizado pelas elites. Conforme explicou o autor, tal processo acaba gerando uma ausência de alteridade que faz com que qualquer tipo de tensão ou conflito seja visto como desafiador à homogeneidade social ou, melhor, à ordem vigente, e nunca como um direito de divergência, o que inviabiliza qualquer tipo de contestação relacionada às questões sociais, políticas e culturais. É por isso que o poder autoritário pode ser definido como um poder que recusa qualquer tipo de mudança e tende sempre ao imobilismo, já que as mínimas alterações no panorama somente são aceitas quando favorecem e são passives de controle por parte dos que detêm o poder.

[10] Entendemos que a democracia brasileira sempre foi frágil pelo fato de nunca ter se consolidado, na medida em que sempre esteve maculada pelas permanências autoritárias e pelo desrespeito aos direitos fundamentais de grande parte da população. Em relação a crise da democracia, entendemos ser um fenômeno mundial ensejado pela globalização e pelas consequentes alterações nos fatores soberania e população. Nesse sentido ver HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2014, e FERRAJOLI, Luigi. Poderes selvages. La crisis de la democracia constitucional.Madrid: Minima Trotta, 2011.

[11] Anthony Pereira definiu legado autoritário como sendo“ […] configurações institucionais que sobrevivem à transição democrática e intervêm na qualidade e na prática de democracias pós-autoritárias.” (PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão. O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 239.)

[12] Ver relatórios das ONG’s Anistia Internacional (disponível aqui) e da Human Rights Watch (disponível aqui). Acesso em: 10.jun.2015.

[13] O regime democrático está previsto na Constituição Federal de 1988, mais precisamente no Artigo 1º: ”Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos(…)”

FelipeLazzari

Felipe Lazzari da Silveira

Advogado. Doutorando e Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Processual Penal.

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