O sistema processual brasileiro é misto?

O sistema processual brasileiro é misto? Para responder a pergunta, inicialmente cumpre mencionar algumas características e diferenças entre o sistema acusatório e o inquisitório.

O sistema inquisitório, que teve seu ápice na Idade Média, nos tribunais de inquisição, caracteriza-se pela aglutinação das funções de acusar e julgar em uma mesma pessoa: o juiz. Era o mesmo juiz que colhia a prova e formulava a acusação. Não havia, portanto, separação de funções, o que comprometia, indubitavelmente, a questão da imparcialidade.

No sistema inquisitório, o acusado era tratado como objeto do processo, e não parte processual. O simples fato de existir uma acusação em desfavor de um indivíduo era suficiente para que passava a ser tratado como fonte de prova. Ademais, o processo era sigiloso e secreto, o que impedia que houvesse paridade de armas e contraditório efetivo.

Por sua vez, o sistema acusatório que, historicamente, precedeu ao sistema inquisitório, reapareceu após a Revolução Francesa, e ganhou força nos países de índole democrática. O referido sistema caracteriza-se pela clara distinção entre as funções de acusar e julgar. O órgão que acusa é distinto daquele que julga. Ademais, a iniciativa probatória pertence as partes, e o processo é regido pela publicidade, igualdade de armas e contraditório.

Partindo-se do que foi dito, surge a seguinte indagação: o processo penal brasileiro, atualmente, pode ser classificado como acusatório ou inquisitório?

A doutrina majoritária classifica o nosso sistema processual penal como misto, em virtude da prevalência de características inquisitórias na fase pré-processual (fase de inquérito) e de características acusatórias na fase processual. 

Afirma-se que a fase pré-processual brasileira é inquisitorial, e a fase processual, por sua vez, acusatória, já que é marcada pelo contraditório e pela ampla publicidade dos atos processuais.

Assim, devido a essa duplicidade de características, costuma-se dizer que o sistema processual penal brasileiro é misto, já que predomina o sistema inquisitório na fase preliminar ou pré-processual, e o sistema acusatório na fase processual.

Contudo, não concordamos com essa classificação imposta pela doutrina majoritária. Entendemos que o fato de haver duas fases, uma na qual as garantias fundamentais são reduzidas em prol da investigação (fase pré-processual), e outra em que as garantias fundamentais supostamente prevalecem e são respeitadas (fase processual), não é critério idôneo e suficiente para classificar o sistema processual brasileiro como misto.

Nesse sentido, corroboramos com o entendimento de Aury Lopes Jr. que diz que, atualmente, não existem mais sistemas processuais puros, pois todos os sistemas são mistos. Assim, para que se possa classificar um sistema como acusatório ou inquisitório, é necessário que se analise o princípio informador do sistema.

Se o princípio informador for inquisitivo (gestão da prova nas mãos do juiz), estaremos diante de um sistema processual inquisitivo. Por ouro lado, se o princípio informador for dispositivo (gestão das provas nas mãos das partes), estaremos diante de um sistema acusatório.

Em outros dizeres: o sistema processual será definido de acordo com a atuação do julgador no curso do processo, pois não basta a separação inicial de funções para que o sistema seja classificado como acusatório, inquisitório ou misto.

Nesse diapasão, se o juiz é participativo na busca pela verdade e possui poderes instrutórios, ou seja, se ele atua de forma ativa no curso do processo, não é uma mera separação inicial de funções ou o reconhecimento de que, de fato, há contraditório e publicidade na fase processual, para que o sistema ganhe ares acusatórios.

Pensamos que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitório se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz. (LOPES JR, p. 29, 2016).

Portanto, na visão de Aury Lopes Jr, o sistema processual brasileiro deve ser encarado como neoinquisitório, em virtude dos traços inquisitórios que insistem em permanecer no nosso processo penal:

Todas essas questões giram em torno do tripé sistema acusatório, contraditório e imparcialidade, porque a imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória. Portanto, pensar no sistema acusatório desconectado do princípio da imparcialidade e do contraditório é incorrer em grave reducionismo. (LOPES JR, p. 29, 2016).

Nota-se que, só haverá imparcialidade quando o juiz manter um certo distanciamento na colheita da prova, pois o juiz que tem poderes instrutórios, tem a sua imparcialidade maculada, ainda que inconscientemente.

Não se exige-se, portanto, que o juiz seja neutro – o que por si só é inalcançável -, mas tão somente que ele não participe da produção probatória. Ademais, a prevenção como critério de fixação de competência é um outro fator que interfere na imparcialidade e, consequentemente, nas raízes acusatórias da fase processual penal brasileira.

Por fim, conclui-se que a separação inicial de funções e a existência de uma fase de natureza preliminar são critérios insuficientes para classificar o nosso sistema processual penal como sendo misto ou de natureza acusatório, pois, conforme já dito, o que diferencia um sistema do outro é o alheamento do julgador.

No sistema acusatório, o juiz é alheio à produção de prova. Já no inquisitório ou neoinquisitório, o juiz participa ativamente na produção da prova. Assim, é correto afirmar que o sistema processual penal brasileiro é neoinquisitório, em virtude dos vários dispositivos legais que possibilitam ao juiz atuar de maneira ativa e direta na produção da prova.


REFERÊNCIAS

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo. Saraiva. 2016.