Sistemas penitenciários
Sistemas penitenciários
Na última coluna enfatizei a importância de se falar sobre as teorias que pretensamente tentam racionalizar a pena de prisão, trazendo ao debate a teoria agnóstica da pena de Zaffaroni, uma vez que a crença na pena de prisão ultrapassa no tempo.
Hoje quero falar sobre os sistemas penitenciários e penso que temas como tais se mostram de uma atualidade tenaz, na medida em que se noticiam projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional sobre a vedação de banho de sol e recreação, por exemplo, aos encarcerados.
Em outro momento falarei sobre a tentativa de proibição da visita íntima que traz a tona um dos efeitos produzidos pela prisão, encampado pela prisionização, que é o problema sexual, o qual na evolução do próprio sistema prisional teve exatamente na visita íntima a sua solução, e que parece ser desprezado por quem suscita ideias dessa monta.
Aliás, vale aqui dizer que tais ideias remontam há séculos passados, portanto, assim como Cazuza diria, são um museu de grandes novidades. E nesse ponto Eduardo Galeano tem razão, pois o passado aqui deve sempre aparecer convocado pelo presente, como memória viva de nosso tempo.
Para tanto, aconselho a leitura da tese de doutoramento de Cezar Roberto Bitencourt, publicada pela Editora Saraiva, a minha edição é de 2001, intitulada ‘Falência da Pena de Prisão, Causas e Alternativas’.
É na tese do renomado e reconhecido autor que me basearei por ora.
De acordo com o mesmo, os primeiros sistemas penitenciários surgiram nos Estados Unidos, ainda que não se possa afirmar que a prisão é uma invenção norte-americana, muito pelo contrário.
Esses sistemas tiveram como antecedentes as concepções religiosas e os estabelecimentos de Amsterdam, nos Bridwells ingleses e outras experiências da Alemanha e Suíça, os quais marcaram o nascimento da pena privativa de liberdade, pois teriam superado a utilização da prisão como mera custódia.
Nesse contexto, surge a primeira prisão norte-americana em 1776, início do chamado sistema pensilvânico ou celular. Influenciado pelos quaqueiros, de acordo com o autor,
o isolamento em uma cela, a oração e a abstinência total de bebidas alcoólicas deveriam criar os meios para salvar tantas criaturas infelizes.
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Impôs-se o isolamento em celas individuais somente aos mais perigosos, os outros foram mantidos em celas comuns, e a estes era permitido trabalhar conjuntamente durante o dia, aplicada uma rigorosa lei do silêncio, ou seja, a proibição da fala e da conversa.
Ocorre que tal experiência sofreu em poucos anos graves estragos e um grande fracasso, sendo a causa fundamental a tanto a superlotação carcerária. De acordo com Bitencourt, ao citar John Lewis Gillin, Criminology and penology, p. 277,
O regime disciplinar perdeu-se totalmente, e a prisão converteu-se em um lugar onde imperava a desordem, transformando-se em uma escola do crime.
Aliás, conforme assevera o autor, Melossi e Pavarini já teriam salientado que o modelo filadélfico, longe de buscar a reintegração do preso ou o tratamento, serviu de instrumento eficaz de dominação e de imposição da ideologia da classe dominante, tão-somente.
Sendo que a crítica principal que se fez ao regime celular foi referente à tortura refinada que o isolamento total significava, tanto que o próprio Enrico Ferri, um dos expoentes da criminologia etiológica, expressou em sua obra Sociologia Criminal, de acordo com Bitencourt, que a prisão celular era desumana, produzindo a chamada loucura penitenciária e a tuberculose nas prisões, sendo ineficaz e muito cara para ser mantida.
Daí por que uma das razões para o surgimento do sistema auburniano, o qual além do trabalho em comum adotava a regra do silêncio absoluto, uma vez que os detentos não podiam falar entre si, somente com os guardas, com licença prévia e em voz baixa.
Nas palavras de Bitencourt:
Nesse silêncio absoluto Foucault vê uma clara influência do modelo monástico, além da disciplina obreira. O silêncio ininterrupto, mais que propiciar a meditação e a correção, é um instrumento essencial de poder, permitindo que uns poucos controlem uma multidão. O auburniano, da mesma forma que o filadélfico, pretende, consciente ou inconscientemente, servir de modelo ideal à sociedade, o microcosmos de uma sociedade perfeita, onde os indivíduos se encontrem isolados, ou em sua existência moral, mas reunidos sob um enquadramento hierárquico estrito, com o fim de resultarem produtivos ao sistema.
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Assim, verifica-se que ambos os sistemas impediam que os reclusos pudessem se comunicar-se entre si e os separavam em celas individuais durante a noite, sendo que a diferença estava que no regime celular a separação se dava durante todo o dia e no auburbiano eram reunidos durante algumas horas para poder dedicar-se a um trabalho produtivo.
Daí por que dizer que o sistema celular fundamentou-se basicamente em inspiração religiosa e o auburniano em motivações econômicas, sendo que ambos adotavam um conceito punitivo e retributivo de pena, obviamente.
Então, no decurso do século XIX surgem os sistemas progressivos, uma vez que, de acordo com Bitencourt, o apogeu da pena privativa de liberdade coincide com o abandono dos regimes celular e auburniano e a adoção do regime progressivo, tal como o faz a Lei de Execuções Penais no Brasil, ainda no ano de 1984.
Conforme Bitencourt:
A essência desse regime consiste em distribuir o tempo de duração da condenação em períodos, ampliando-se em cada um os privilégios que o recluso pode desfrutar de acordo com sua boa conduta e o aproveitamento demonstrado do tratamento reformador. Outro aspecto importante é o fato de possibilitar ao recluso reincorporar-se à sociedade antes do término da condenação. A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende constituir um bom estímulo à boa conduta e à adesão do recluso ao regime aplicado, e, de outro, pretende que esse regime, em razão da boa disposição anímica do interno, consiga paulatinamente sua reforma moral e a preparação para a futura vida em sociedade. O regime progressivo significou, inquestionavelmente, um avanço penitenciário considerável.
Embora saibamos que posteriormente a criminologia crítica apontará para o fator criminógeno que constitui a prisão, para além das especificidades brasileiras e da racionalidade que se pretende emprestar a fundamentação da pena de prisão, conforme esboçamos na última coluna.
A evolução dos sistemas penitenciários
O fato é que a história e a própria evolução da pena de prisão nos demonstra que propostas como as que tramitam no Congresso Nacional não apenas são despidas de memória, como de qualquer outro embasamento científico, na medida em que sequer se coadunam com a evolução do próprio sistema penitenciário, uma vez já experienciadas e fracassadas, mas traduzem-se em inconstitucionais e inconvencionais, por que ferem a proibição da tortura prevista na Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, ainda que esse argumento não convença a sanha punitiva.
Vejam que não se trata de retrocesso apenas, estamos retornando tão intensamente ao passado, que muito não se tardará a vingança privada, aliás, já visualizada por muitos autores que contestam a experiência brasileira de implementação efetiva do monopólio legítimo e exclusivo da violência por parte do Estado, mas isso já é assunto para outras colunas.
Por ora, só questiono o quão bárbaros somos.
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