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Sistemas processuais: acusatório

A origem do sistema acusatório está ligada ao Direito Grego, sendo que a persecução penal se desenvolve com a participação direta do povo no exercício da acusação.

Conforme analisado na coluna anterior (AQUI), o problema desse sistema na sua versão original residia exatamente nesse fato, uma vez que a acusação realizada pelos particulares era falha e passou a exigir uma postura mais ativa por parte dos magistrados, o que, eventualmente, acabou acarretando o surgimento do sistema inquisitivo.

Contudo, com a Revolução Francesa e suas novas ideologias de valorização do homem e dos direitos fundamentais, o sistema inquisitivo perdeu força e o sistema acusatório foi paulatinamente ressurgindo das cinzas.

Dessa vez, todavia, percebeu-se que o mesmo erro não poderia ser repetido, ou seja, a acusação não poderia ficar nas mãos de particulares.

Assim, foi necessária uma divisão da persecução penal em duas fases distintas, sendo que a responsabilidade pela acusação agora ficaria a cargo do próprio Estado, porém, por meio de um órgão distinto do juiz. É exatamente nesse ponto que surge o Ministério Público.

Aury Lopes Jr., ao citar Carnelutti, nos ensina que há um nexo entre o sistema inquisitivo e o Ministério Público, justamente devido a necessidade de dividir a atividade estatal em duas partes. Nesse contexto, o Ministério Público seria uma parte fabricada, que surge da necessidade do sistema acusatório e garante a imparcialidade do juiz (LOPES JR., 2015, p. 118).

Dentro dessa nova perspectiva, é impossível não reconhecer que o Ministério Público é parte no processo penal, parte esta responsável pelo exercício de uma pretensão acusatória.

Somente com essa divisão de funções o sistema processual fica perfeito, havendo, assim, uma parte acusadora, outra responsável pela defesa, e um juiz imparcial na ponta da pirâmide.

É preciso que a doutrina processual penal desmistifique o mito de que o Ministério Público é um sujeito imparcial, que só objetiva promover a justiça. Aliás, quando tratamos de processo penal, o ideal seria que os representantes do Ministério Público fossem chamados de “promotores de acusação” e não “promotores de justiça”.

O fato de um promotor pleitear, por exemplo, a absolvição do réu em alegações finais, não significa que ele seja um sujeito imparcial. Lembramos que, como agente público, o promotor deve pautar sua atuação pelo princípio da legalidade, o que impossibilita a efetivação da acusação sem que haja, ao menos, a prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria.

Ora, seria mesmo absurdo que um órgão pertencente ao Estado, que deve atuar de acordo com a lei (expressão da vontade geral), procedesse ao seu arrepio, pleiteando a condenação de um suspeito sem respaldo probatório para tanto.

Não podemos, destarte, incidir no erro de acreditar que uma mesma pessoa possa ser capaz de executar duas funções tão antagônicas como acusar e defender, não se podendo, outrossim, confundir a observância da legalidade com uma suposta imparcialidade (LOPES JR., 2015, p. 119).

Nessa mesma linha de raciocínio, justamente em virtude de o Ministério Público ser parte no processo penal, somos absolutamente contrários ao seu poder investigatório.

Isto, pois, como pode um agente do Estado conduzir uma investigação com a devida e necessária imparcialidade, se ele já vislumbra no horizonte uma futura batalha judicial a ser travada?! Mais do que isso, quais seriam as garantias do investigado diante de uma investigação conduzida pelo próprio órgão responsável pela sua acusação posterior?

Não podemos olvidar que a investigação preliminar não se direciona exclusivamente à acusação, sendo que em inúmeras situações a investigação acaba atuando em sentido contrário, ou seja, fornecendo elementos que servem ao próprio investigado, demonstrando, assim, a desnecessidade de submetê-lo a uma fase processual.

É exatamente esse o papel do inquérito policial, que não tem vínculo nem com a acusação e nem com a defesa, sendo compromissado apenas com a verdade e com a justiça, servindo como um verdadeiro filtro processual, impedindo que acusações infundadas desemboquem em um processo.

Feitas essas observações, consignamos que a adoção do sistema acusatório, além de exigir a divisão da persecução penal em duas fases distintas (investigação e processo), concentrando as ações processuais (acusação, defesa e julgamento) em pessoas diferentes, também demanda a observância de outras características, especialmente no que se refere à postura do juiz, que, necessariamente, deve abster-se de participar da produção de provas, deixando essa função apenas para as partes (acusação e defesa).

Somente assim a imparcialidade do juiz restará preservada e o sistema acusatório será respeitado.

Aury LOPES JR. (2015, p. 109) destaca que o juiz “deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base no material defeituoso que lhe foi proporcionado”.

É essa a premissa elementar do sistema acusatório, que exige a inércia judicial mesmo diante de eventuais falhas oriundas da atividade acusatória.

Raciocínio semelhante deve ser observado no que diz respeito à defesa. Com a criação do Ministério Público o Estado conseguiu mitigar os problemas decorrentes de uma atividade acusatória mal administrada.

Nesse sentido, se faz necessário que o Estado também se preocupe em criar e manter um serviço público de defesa, o que deve ser feito por meio do fortalecimento das Defensorias Públicas. Somente assim nós poderíamos ter um sistema acusatório perfeito.

Frente ao exposto, podemos sintetizar as principais características de um sistema acusatório puro da seguinte forma: 1-) distinção entre as atividades de acusar, defender e julgar; 2-) a iniciativa probatória cabe exclusivamente às partes; 3-) a figura do juiz deve se manter inerte e imparcial, sem qualquer participação na atividade probatória; 4-) predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes do processo; 5-) vigora a publicidade e a oralidade; 6) observância do contraditório e da ampla defesa; 7-) inexistência de um sistema tarifado de provas, prevalecendo o livre convencimento motivado do julgador; 😎 possibilidade de revisão das decisões por meio do duplo grau de jurisdição; 9-) existência de coisa julgada; 10-) o imputado deve ser tratado como sujeito de direito (desde a investigação criminal) e não como objeto de direito.


REFERÊNCIAS UTILIZADAS

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.  12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.


REFERÊNCIAS INDICADAS (LEITURA COMPLEMENTAR)

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis. 6.ed. Niterói: Impetus, 2009.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et al.”. 3.ed. São Paulo: RT, 2010.

HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

PIMENTEL JÚNIOR, Jaime; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. São Paulo: Editora Verbatim, 2017.

SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias – Teoria e Prática de Polícia Judiciária. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.

ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías. Delegado de Polícia em Ação. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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