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Sobre o delito de receptação e a redistribuição do ônus da prova no processo penal

O processo penal possibilita ao operador aproximar-se da verdade dos fatos e do direito. Todavia, segundo adverte L. Ferrajoli, há incertezas inerentes ao que o processo “é”, a despeito do que “deveria ser”.

Ônus da prova no processo penal

Com vistas a contornar essas dificuldades, o doutrinador propõe que: (a) o juiz, no plano do que o processo “deve ser”, há que julgar, condenar ou absolver de acordo com as provas do fato, positivas e negativas, submetendo-lhes a sua convicção; (b) as garantias processuais, no que se refere à produção de provas, exigem certificar-se da necessidade da prova ou verificação, a possibilidade de contraprova ou refutação, e que a decisão seja imparcial e “motivada sobre a verdade processual fática” (FERRAJOLI, 2014, p. 141); e (c) só se pode falar em segurança jurídica se a lei e a jurisdicionariedade forem estritas, ou seja, a lei deve ter conteúdo claro e inequívoco, e o pronunciamento judicial há de estar firmado na prova dos fatos e na interpretação do direito, sem espaço para que se extrapolem esses dois limites.

Não raras as vezes, tais premissas deixam de ser observadas no âmbito judiciário, de modo a prevalecer a praxe jurídica sobre o preceito da legalidade. Ao nosso ver, bem o expressa o entendimento reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da redistribuição do ônus da prova no julgamento de crimes de receptação, temática sobre a qual nos debruçaremos.

O Código Penal, em seu artigo 180, caput, tipificou a conduta de

adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte.

No que se refere aos elementos objetivos do tipo, a análise do conjunto probatório cursa sem maiores esforços. Por outro lado, é no campo da tipicidade subjetiva que se encontram os entraves à cognição da verdade.

Isso porque, sendo inviável incursionar pela consciência do agente, o dolo há que ser excisado das circunstâncias objetivas em que se deu a prática da conduta.

Nesse ponto, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou que compete ao acusado comprovar a ausência de dolo e a origem lícita do bem quando apreendido em sua posse. Colha-se o excerto:

Esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento de que, tratando-se de crime de receptação, cabe ao acusado flagrado na posse do bem demonstrar a sua origem lícita ou a conduta culposa, nos termos do art. 156 do CPP. Precedentes. […]

(AgRg no HC 588.999/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 20/10/2020)

Ressaltamos, contudo, que, conforme a inteligência do art. 5º, LXV, da CRFB, a inversão do ônus probatório é vedada no âmbito criminal (princípio da não culpabilidade).

Ademais, em seu campo normativo, o legislador disciplinou que “a prova da alegação incumbirá a quem fizer” (art. 155, caput, do Código de Processo Penal).

Portanto, de se concluir que o ordenamento acometeu ao Ministério Público demonstrar a existência dos fatos descritos na peça inicial, seja no que diz respeito à presença do elemento subjetivo do tipo e à ilicitude da conduta.

Corrente contrária fundamenta que a tipicidade do fato implicaria presunção relativa de sua ilicitude, afastando-se, consequentemente, o ônus acusatório de provar a inexistência de causas de justificação (teoria da indiciariedade – ratio cognoscendi).

Ocorre que o artigo 386 do Código de Processo Penal (redação dada pela Lei nº 11. 690/2008), em seus incisos VI e VII, positivou como hipóteses absolutórias: (a) a existência de circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou a fundada dúvida sobre a sua existência; e (b) a inexistência de prova suficiente para a condenação.

Fácil perceber que o regramento atribuiu ao titular da ação penal o ônus da prova no processo penal, cabendo a ele comprovar a inexistência de causas excludentes da ilicitude do fato, bem como a presença, ou não, do componente anímico, sob pena de incidir a norma do art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.

Ainda, não se olvide que, no âmbito da Teoria Finalista da ação, os elementos subjetivo do tipo e normativo da conduta inserem-se no primeiro plano analítico do conceito de crime, tal que, mesmo com a adoção da Teoria da Indiciariedade, cumpriria ao acusador a prova do elemento subjetivo do tipo penal, uma vez que se refere à própria tipicidade do fato posto em análise.

Tais considerações são de todo pertinentes no que diz com o delito de receptação, pois em sua modalidade fundamental exige demonstrar-se o dolo direto do agente (art. 180, caput, do CP). Nesse sentido, transcrevo o escólio de Rogério Sanches Cunha:

O caput é punido a título de dolo, devendo o agente ter certeza acerca da origem criminosa da coisa (dolo direto). (CUNHA, 2020, p. 452-453).

Por força desses elementos, arremato que a inversão do ônus da prova no processo penal, no julgamento dos delitos de receptação passa ao largo do rigor técnico-jurídico e carece de amparo legal. Trata-se de subversão do sistema acusatório e, habitualmente, impõe ao acusado – elo mais fraco da relação processual – o fardo excessivamente pesado (prova diabólica) de comprovar que a realização do resultado normativo não era desejada, ou melhor, que desconhecia a origem ilícita da coisa.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

CUNHA, Rogerio Sanches. Manual de direito penal: parte especial. 12. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 452-453

FERRAJOLI, Luigi. Direito e RazãoTeoria do Garantismo Penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

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