Sobre Fabianos, Severinos e soldados amarelos
Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
E logo depois, como se tivesse medo de que alguém tivesse ouvido,
– Você é um bicho, Fabiano.
E em seguida reafirma,
– Um bicho, Fabiano (RAMOS, 1992, p. 18)
Em tempos conturbados, em que a política se apresenta enfraquecida e desacreditada, recai sob a atividade judicial a função de responder a esses anseios. Sob uma atmosfera salvacionista, o sistema penal é um dos eleitos como capaz de resolver as mazelas sociais, um novo messianismo volta a se esgueirar sob as frestas dos fóruns e palácios da justiça.
Versa sobre a toga o ar místico do herói esperado, que já não mais fala nos autos, mas apela pelo apoio popular na mídia. A figura do juiz penal solitário, receoso, comprometido com sua função garantidora de Direitos fundamentais em uma arena onde se digladiam agentes de segurança pública e cidadãos munidos de seus defensores, foi envaidecida. Passaram-se dos autos aos holofotes, do Direito ao apelo popular, das glosas às manchetes.
A figura do herói não é novidade na história brasileira; ela é normalmente buscada na figura do Poder Executivo, que por tantas vezes concentrou poder na justificativa de estar cumprindo a vontade popular, cuja bandeira entoada sempre trouxe as mesmas palavras:
Livrar o país dos corruptos que enriquecem sobre a miséria do povo.
Agora, entoam o mesmo canto os novíssimos agentes de segurança pública, que saem da inércia da magistratura para lutarem no octógono da defesa social. A toga, cuja simbologia alude a impessoalidade do cargo e a fineza do Direito, não foi capaz de frear as inclinações humanas, substituiu-se pela capa do herói dos quadrinhos, justiceiro, que combate vilões, extermina-os sem piedade, comete injustiças, e se esconde e se justifica atrás de seu manto. Ora! A realidade é mais complexa que o mundo dos heróis e vilões! Mas a cólera e a vaidade são humanas, demasiadamente humanas.
Assoberbados pela cegueira branca, esse contexto é aplaudido e comemorado por muitos, enquanto por outros, a crítica um tanto quanto clichê, ainda continua necessária. Desde Beccaria, cinge o Direito Penal e o Processo Penal as suas funções protetoras, capazes de proteger o cidadão do Estado Leviatã, dando respostas aos delitos na medida de suas culpabilidades.
Esse conceito transformou-se durante a história, e tornou-se uma conquista civilizatória. Esse cenário salvacionista, por outro lado, relativiza garantias ao surfar na onda do herói, e justifica a ação pela nobre finalidade do combate à violência. Mas no Direito, os fins são importantes, mas os meios são essenciais e por mais nobre que seja o fim, não se pode servir-se de meios escusos. As regras do jogo importam!
Toda essa relativização de garantias fundamentais atingem em cheio àqueles que estão à margem do sistema social. O sistema criminal metastático, encarcera cada vez mais, responde a problemas complexos com mais Direito Penal, usado com ligeireza como propaganda eleitoreira. Na literatura de Graciliano Ramos, em sua obra Vidas Secas, Fabiano é um retrato desse ambiente. A literatura é sempre uma analista atenta e essencial da vida humana.
Na narrativa de Graciliano, as personagens são retratadas de maneira bruta e indelicada, produtos da atmosfera da seca que suga a humanidade, substitui os pés pelas patas duras de cavalos, a fala pela linguagem monossilábica de cachorros. Fabiano, o protagonista, é representado como bicho, grosseiro, que emite grunhidos ao invés de palavras. É mais bicho que sua cachorra Baleia.
A Baleia sonha enquanto dorme, teme a morte e encontra significados para a vida; ela é tão humana que é capaz de sonhar até mesmo com o pós-morte. Já Fabiano, despido de sentido à própria vida, é um “estúpido”, inapto para imaginar a morte, e viver a vida. Além disso, em sua vida de sertanejo pobre, só conhece o Estado através do soldado amarelo. O Estado é sempre policialesco!
Fabianos
Os Fabianos são os maiores clientes do sistema criminal: sem vozes, relegados a serem bichos no cárcere, que só conhecem o braço punitivo e repressor do Estado. A luta contra os crimes que assolam o sistema político e econômico atingem em cheio, como bala perdida (mas não tão perdida assim), os que estão à margem do sistema social e no topo do sistema criminal. Para esses, a presunção de inocência e o Direito Penal do fato são penduricalhos do Processo Penal.
Tal qual na literatura de Graciliano Ramos, a realidade não é feita de heróis e vilões, apartada na luta do bem contra o mal, reduzida a soluções simplistas e panfletárias. Direito penal não é vingança social, e juízes não são justiceiros. Conceitos óbvios, mas que aparentam esquecidos, ou convenientemente esquecidos. Quando falamos de sistema criminal, sempre estaremos falando de Fabianos, Severinos e soldados amarelos, horrivelmente genéricos, sangue do mesmo sangue derramado. Bichos de tantas Marias por aí.
REFERÊNCIAS
RAMOS, G. Vidas secas. São Paulo: Record, 1993.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
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