Somos todos Truman
Vive-se o show de Truman onde somos tanto espectadores quanto protagonistas das histórias que realçam os destaques do dia. E é por meio da grande facilidade em adentrar as casas e intimidades das pessoas que se vive o Show de Truman: por isso, somos todos Truman.
Sem saber, somos vigiados agora até por agências de controle estrangeiras, ainda mais se há alguma questão de risco que possa estar ocorrendo próxima as nossas residências e que não temos conhecimento.
A constante vigília sobre as vidas por aí ultrapassam as antigas comunidades de fofoqueiras dos bairros, agora se profissionalizam em agências de informações. Geralmente quando se entra em algum site de compras ou pesquisas algumas perguntas são feitas. Recebe-se formulários de questionamentos por e-mail.
O mundo se torna cada vez um lugar menor e a vida a cada dia mais controlável.
Sabe-se que o sistema se configura pelas básicas informações que o preenchem, a respeito de seu objeto de estudo ou de sua administração. Tudo o que acontece na vida são dados utilizados para computar nesse sistema em que se vive.
A midiatização de tudo é onipresente. Dia desses uma menina de quinze anos foi assassinada em uma região do litoral paranaense.
A imagem gerada pela produção do programa policial que cobriu o caso foi assustadora, não somente pela cena do corpo debruçado e as marcas visíveis de violência, mas por entender que somos vendidos a troco de audiência.
Não há respeito aos familiares da pobre vítima que perdeu tudo o que tinha, nem daquele corpo naquela posição horrenda marcado pela brutalidade do agressor.
Existem equipes de notícias de programas infelizes como esse que rodam as cidades atrás de acontecimentos, e quanto mais espetacular melhor. A população tem direito de ser informada, bem como a vítima e sua família, de serem preservadas.
O Show de Truman ocorre sempre. Na incrível película, o personagem principal interpretado pelo inigualável Jim Carrey é protagonista de um show de televisão desde o seu nascimento, sendo o único que desconhece a farsa criada ao seu redor. Um verdadeiro Big Brother da vida real de apenas uma pessoa.
Os outros: amigos, namoradas, família, são todos atores. Claro que a crítica inicial seria a respeito da impossibilidade de tal empreendimento, um estúdio só para um programa que verse sobre a vida de uma pessoa. Mas sabemos que não é essa a crítica do filme, nos tempos hodiernos.
Em 1998, quando o diretor Peter Weir trouxe à vida Truman Burbank o mundo já estava mudando os paradigmas aceitos como estabelecidos até então.
A era da tecnologia já se fazia presente como um grande acontecimento e os computadores ganhavam vida entrando pelas portas dos lares das famílias que tinham condição de ter um, eles conversavam e deixavam obsoleta a antiga máquina de escrever.
O colapso de 2000 do mundo dos computadores em algum algoritmo essencial para a vida tecnológica não ocorreu, como alguns achavam possível que pudesse acontecer. Os computadores evoluíram, como tudo na vida cientifica.
As imagens dos noticiários são em tempo real, os fatos ocorrem no mesmo momento em que são transmitidos ao mundo. A constante vigília sobre nossas vidas e passos ocorrem desde os mercados e suas pesquisas até nos itens que consumimos com maior frequência.
Os gastos com cartões de crédito, as câmeras que indicam a todo o momento que não estamos sozinhos, nunca.
A publicidade dos atos de todos segue com o mesmo entusiasmo com a qual perseguia Truman, sendo transmitido 24 horas ao vivo.
Nota-se que hoje somos como Truman, quase 20 anos após o filme ser lançado.
A tecnologia, para o bem e para o mal, conseguiu nos transformar em seres com uma marca, facilmente identificáveis no meio da multidão. É fácil encontrar alguém em questão de minutos.
O mundo que antes parava após o expediente continua por meio de redes sociais e telefones celulares que não dão descanso. E o pior é que isso vicia.
Há uma passagem na obra do escritor gaúcho Érico Veríssimo, O tempo e o vento, em que os antigos moradores de um tradicional lugarejo se sentiram ultrajados e violentados com a presença da nova tecnologia que havia sido trazida da cidade grande: o telefone.
Aquilo era o tinhoso gritando nos ouvidos dos mais velhos que não entendiam o motivo da tecnologia que se fazia presente.
Era um disparate! Algo tão barulhento gritando dentro da própria casa! Era abusivo. Mas como tudo, com o tempo, venceram as facilidades que o aparelho trazia. Os celulares e internet mostram hoje, por meio de aplicativos, onde o indivíduo está no momento. Inúmeras imagens surgem na internet e redes sociais mostrando alguma desgraça.
Esse é o verdadeiro show de Truman, que se revelou magnânimo por sua eficiente previsão do futuro. Nos furtar de viver nesse mundo de Truman, como seria possível?
Truman somos nós. A crítica inverte a questão.
Espancamentos, violência, bestialidades, enforcamentos e apedrejamentos podem ser vistos por qualquer pessoa pela internet. Pelas redes sociais e celulares se conhece os passos do sujeito.
E essas informações são preciosas nas mãos de quem está em busca de expansão de sua marca comercial ou daqueles que possuem um ímpeto uma pouco mais “fora da lei”. Há algumas semanas, numa rede social, uma menina de treze anos marcou encontro com um homem que não era o que ela esperava.
Violentada, sobrou contar ao mundo os males de certas aberturas e liberdades que a internet trouxe, quando usada sem cuidado por um lado, e sem escrúpulos por outro.
Nas ruas dos bairros, é visível a “Trumanidade”. Placas com dizeres de “Vizinhos de olho: Nossos vizinhos estão de olho em você”, dão a sensação de segurança aos moradores.
Todavia, evidencia que se vive em uma sociedade do medo que pode, em nome desse temor, marcar qualquer diferente que passe naquela rua como alguém que precise ter uma vigia constante.
Em uma rua de um bairro da cidade os alarmes soaram, pois havia um homem estranho perambulando pelas ruas. Saíram os vizinhos para ver qual tipo de Truman seria aquele homem. Cansados de assaltos e roubos eles se uniram e contra o visitante indesejado foram ter conversa.
Cercaram o indivíduo que teve de mostrar documentos e quase foi espancado por alguns valentes da região. A sorte é que o homem era aluno particular de um professor de matemática da rua, que o reconheceu. Estava perdido, buscando o número da residência, escondida por entre os arbustos que o mitigava.
Essa é a sociedade da informação, do medo, do descaso de alguns péssimos programas policiais que mostram a vítima agonizante ou morta para todos assistirem, inclusive a família, que também é vítima. Essa é a sociedade do espetáculo sob a qual se debruçou Guy Debord.
Esse é o nosso mundo, o mundo dos Trumans.
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