“Spencerismo” ou “Darwinismo” social: os criadores do mito das raças
“Spencerismo” ou “Darwinismo” social: os criadores do mito das raças
O Positivismo Criminológico nasceu em meados século XIX, amparado pela influência do cientificismo, de uma grande ambição de verdade e dos pressupostos estabelecidos pelo evolucionismo darwinista.
A obra “O Homem Delinquente”, de Cesare Lombroso, que contou com a colaboração de Ferri e Garófalo, é considerada um marco importantíssimo desta Escola, já que, dentre suas principais teses, temos a defesa da imagem do delinquente nato, que é identificado a partir de suas características anatômicas e psicológicas, em uma negação direta ao livre-arbítrio e à culpabilidade.
A Escola Positivista surgiu em meio a um contexto onde as ciências sociais, como a Antropologia e a Sociologia, eram notórias, visando, sobretudo, a defesa da sociedade de maneira mais eficaz contra a ação dos delinquentes, onde os direitos sociais prevaleciam sobre os individuais. O conflito de ideias “Escola Clássica versus Escola Positiva” era evidente: enquanto a primeira aclamava o princípio individualista em detrimento da sociedade, a segunda declarava-se socialista.
Apesar da magnitude do Positivismo Criminológico – e de seus triunfos sociais – pouco se fala sobre os primeiros passos dados para que seu advento ocorresse. Sabe-se que, àquela época, a criminalidade representava um grande problema em toda Europa, o que gerou um forte estímulo para que os pensadores refletissem sobre a questão, no entanto, as raízes intelectivas eram mais profundas do que aparentavam.
Charles Darwin foi um dos principais pensadores responsáveis por oferecer embasamentos intelectuais para a materialização do Positivismo Criminológico. Sua obra “A origem das espécies” teve papel indispensável no advento desses alicerces, já que trata do processo de seleção natural, sustentando que a humanidade não resultou de um processo criativo inesperado, mas sim de uma evolução biológica natural, espontânea e complexa em constante interação e transformação, diferente das teorias que explicavam o universo estático de Deus.
Tanto é assim que, por esse ângulo, o professor argentino Ricardo D. Rabinovich Berkman dispõe:
El auge del positivismo se potencia por el clima de optimismo científico y tecnológico que viven Europa y América en la segunda mitad del siglo XIX. Sin embargo, a fines de la centúria,ya se alzan voces de alerta, que buscan prevenir al mundo contra los eventuales peligros que podrían derivarse de una aplicación al derecho de ciertos positivismos,en especial, del biológico, que había cobrado um auge sin precedentes a partir de las obras del inglés Charles Darwin (1890-1882), especialmente, el Origen de las espécies por médio de la selección natural (1859). (RABINOVICH, 2007, p. 208)
Percebe-se, portanto, que a ligação entre a teoria de Darwin e a gênese do Positivismo Criminológico é incontestavelmente visível, tendo em vista que o Darwinismo apoiava-se na hipótese de seleção natural, enquanto o pensamento positivista idealiza que o homem é produto de seu meio social.
Já o filósofo inglês Herbert Spencer foi uma autoridade intelectual em relação ao evolucionismo, teoria esta que também foi determinante para o surgimento do Positivismo Criminológico. Ele foi responsável por intuir a existência de regras evolucionistas na natureza antes de seu compatriota, o naturalista Charles Darwin, elaborar a revolucionária teoria da evolução das espécies. Ainda que muitos não saibam, Spencer é o autor da expressão “sobrevivência do mais apto”, que por inúmeras vezes é atribuída a Darwin.
Spencer foi responsável por retirar ideias das ciências naturais e aplicá-las na sociologia, fato este que criou uma corrente de pensamento extremamente prestigiada à época. Suas deduções o encaminharam até a defesa da primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a natureza como fonte da verdade, incluindo a verdade moral. No âmbito pedagógico, o filósofo inglês cultuou o ensino da ciência, repudiou a interferência estatal na educação e assegurou que o principal escopo da escola era a construção do caráter.
É importante salientar, ainda, que Spencer acreditava na existência de uma lei fundamental da matéria, que foi denominada pelo mesmo como “lei da persistência da força”. De acordo com esse entendimento, a tendência natural de todas as coisas é, desde o primeiro contato com forças externas, desviar-se da homogeneidade em sentido à heterogeneidade e à variedade. À proporção que as forças vindas de fora se mantêm sobre o que antes era homogêneo, maior se torna o grau de diversidade.
O filósofo francês Arthur de Gobineau também contribuiu para a consolidação do Positivismo Criminológico com sua obra “L’Essai sur l’Inégalité des Races Humaines” (Ensaio sobre as Desigualdades entre as Raças Humanas), que foi uma referência categórica na expansão do positivismo racial. À época de seu lançamento, o livro ficou longe dos holofotes, mas, entre os séculos XIX e XX, alcançou a condição de peça-chave na edificação do moderno pensamento sobre as raças, sendo até mesmo rotulado como “o poço envenenado donde brotou toda a teorização racista posterior”.
O sucesso da obra, em fins do século XIX, submeteu-se, evidentemente, às demandas próprias a um período pródigo em interpretar as interações humanas segundo um elemento de natureza pretensamente biológica: a raça.
Por essa época, o paradigma das ciências naturais tornava-se hegemônico e grande parcela da intelectualidade do fin-de-siècle conferia à ideia de raça relativa autonomia conceitual, que lhe foi paulatinamente atribuída no desenrolar da segunda metade do século XIX (GAHYVA, 2011). Gobineau ficou conhecido, popularmente, como fundador do racismo moderno e sustentava, principalmente, que os germânicos faziam parte da única raça pura existente, enquanto negros e amarelos eram frutos de miscigenação.
Faz-se necessário pontuar que a teoria racista de Gobineau não jorrava preconceito apenas contra as raças não brancas, mas também contra, inclusive, aqueles brancos que tinham possuíam origens negras e indígenas. Tanto é assim, que sua teoria racista foi “justificadora da dominação feudal, e se transformaria numa ideologia justificadora da dominação dos países capitalistas centrais sobre os países da África, Ásia e da América Latina e também da dominação de uma elite proprietária sobre o conjunto da população trabalhadora” (BUONICORE, 2005).
Por fim, mas não menos importante, tratar-se-á acerca de Francis Galton, antropólogo inglês que era primo de Charles Darwin, e, com base em sua obra, criou o conceito de “eugenia”, que diz respeito à melhora de uma determinada espécie através da seleção artificial. A primeira obra relevante de Galton foi “Hereditary Genius”, onde o inglês assegurava, basilarmente, que um homem notável teria filhos notáveis.
A partir desse momento, eugenia passou a indicar as pretensões galtonianas de desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse, através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores membros – como se fazia com cavalos, porcos, cães ou qualquer animal -, portadores das melhores características, e estimular a sua reprodução, bem como encontrar os que representavam características degenerativas e, da mesma forma, evitar que se reproduzissem (STEPAN, 1991, p. 1).
Mesmo com a dificuldade de compreensão do mecanismo de transmissão das características, Galton, quando cunhou o termo eugenia, tinha pelo menos uma certeza: que os dados que comprovariam a sua ciência surgiriam do trabalho de registro e análise estatística das características que os progenitores e os seus ancestrais transmitiram à prole (COWAN, 1972, p. 512). Para ele, ademais, a transmissão das características não se limitava apenas aos aspectos físicos, mas também a habilidades e talentos intelectuais (GALTON, 1892, p. 6).
Desta forma, através das explanações supracitadas, torna-se viável o entendimento acerca das consolidações que abriram portas para o positivismo criminológico, Escola esta que tem como principal pilar o determinismo biológico, bem como a busca pela identificação do criminoso nato.
REFERÊNCIAS
BUONICORE, Augusto C. Racismo e colonialismo modernos. Disponível aqui. Acesso em: 30 nov. 2020.
COWAN, R. S. Francis Galton’s statistical ideas: the influence of eugenics. Isis, 63, 4, p. 509-28, 1972.
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado et. al. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.
GAHYVA, Helga da Cunha. “A epopeia da decadência”: um estudo sobre o Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855), de Arthur de Gobineau. Disponível aqui. Acesso em: 30 nov. 2020.
GALTON, F. Hereditary genius. London/New York: Macmillan & Co., 1892. Disponível aqui. Acesso em: 30 nov. 2020.
RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo David. Un viaje por la historia del derecho. 1ª Ed. Buenos Aires: Editorial Quorun, 2007.
STEPAN, N. L. The hour of eugenics: race, gender, and nation in Latin América. Ithaca/London: Cornell University Press, 1991.
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