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STJ: no interrogatório, o réu pode ficar em silêncio e responder apenas às perguntas da defesa

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o interrogatório é ato de defesa e, com isso, o réu pode ficar em silêncio e responder apenas às perguntas da defesa. A decisão liminar (HC 628.224/MG) teve como relator o ministro Felix Fischer.

Decisão

Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido liminar, impetrado em favor de JOSÉ LUCAS ALVES DE ARAÚJO, contra v. acórdão proferido pelo eg. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, nestes termos ementado (fls. 40-45): “HABEAS CORPUS – HOMICÍDIOS QUALIFICADOS TENTADO E CONSUMADO – ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO INTERROGATÓRIO DO PACIENTE – HABEAS CORPUS COMO SUCEDÂNEO RECURSAL –DESCABIMENTO – PRECEDENTES DO STJ. Em consonância com a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a ação constitucional de Habeas Corpus não pode ser utilizada como sucedâneo recursal, excetuados os casos em que patentemente configurado o constrangimento ilegal, que, in casu, não se verifica.” Daí o presente habeas corpus, no qual a d. Defesa sustenta que o paciente, ao optar por responder apenas às perguntas da sua defesa, foi impedido, o que teria o transformado em testemunha, ao não poder exercer seu direito ao silêncio de forma parcial. Informa que “o risco de dano decorre do fato de que na ação penal n. 0012153-11.2020.8.13.0363, o Paciente já foi intimado no dia 16/11/2020, para apresentar alegações finais. Razão pela qual justifica-se a presente liminar, para que os prazos processuais e o próprio curso do processo sejam suspensos até o julgamento do mérito do presente Recurso Ordinário” (fl. 15). Requer, inclusive LIMINARMENTE “que seja suspenso o andamento da ação penal n. 0012153-11.2020.8.13.0363até o julgamento do mérito do presente RHC” (fl. 17). Pedido de sustentação oral (fl. 17). Liminar deferida (fls. 568-572). Informações, às fls. 578-660. O d. Ministério Público Federal, às fls. 664-665, oficiou pelo não conhecimento ou denegação da ordem, nos termos do r. parecer assim ementado: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. INTERROGATÓRIO. INDEFERIMENTO DE REQUERIMENTO DA DEFESA PARA QUE O RÉU, ORA PACIENTE, RESPONDESSE APENAS À PERGUNTAS DE SEUS PRÓPRIOS ADVOGADOS E PERMANECESSE EM SILÊNCIO EM RELAÇÃO ÀS PERGUNTAS DA ACUSAÇÃO E DO JUIZ. ALEGAÇÃO DE NULIDADE. MATÉRIA NÃOAPRECIADA PELO TRIBUNAL ESTADUAL. AUSÊNCIA DE MANIFESTA ILEGALIDADE. DIREITO AO SILÊNCIO QUE ASSEGURA AO RÉU O DIREITO DE PERMANECER CALADO NO INTERROGATÓRIO, MAS NÃO DE RESPONDER SOMENTE ÀS PERGUNTAS DE SEUS DEFENSORES E IGNORAR AS PERGUNTAS DO JUIZ E DO ÓRGÃO MINISTERIAL. Pelo não conhecimento do presente writ ou, se conhecido, pela denegação da ordem.” É o relatório. Decido. A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do col. Pretório Excelso, sedimentou orientação no sentido de não admitir habeas corpus substitutivo de recurso adequado, situação que implica o não conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, seja possível a concessão da ordem de ofício. Tal posicionamento tem por objetivo preservar a utilidade e eficácia do habeas corpus como instrumento constitucional de relevante valor para a proteção da liberdade da pessoa, quando ameaçada por ato ilegal ou abuso de poder, de forma a garantir a necessária celeridade no seu julgamento. Desta forma, incabível o presente mandamus, porquanto substitutivo de recurso ordinário. Em homenagem ao princípio da ampla defesa, no entanto, passa-se ao exame da insurgência, a fim de se verificar eventual constrangimento ilegal passível de ser sanado pela concessão da ordem, de ofício. Para delimitar a quaestio, o v. acórdão, na parte em que importa (fls. 40-45): “Por fim, registro que, ao que se depreende da respectiva Ata judicial, o acusado optou inicialmente por permanecer em silêncio. É certo que o interrogatório não é ato ou entrevista unilateral privativo da defesa, mas segue sob a presidência do Juiz, ainda que garantido ao interrogando o direito constitucional ao silêncio, eventualmente a ser exercido de modo total ou seletivo. O que não se pode é adredemente transmutar o ato de interrogatório – dirigido pela autoridade judicial responsável pela condução do processo – numa entrevista privativa bilateral, entre acusado e defesa, em que se exclui por “atacado”, presunção de desinteresse em responder e de modo antecipado, a participação do juízo ou das partes opostas. É direito do interrogando, querendo, silenciar, faltar com a verdade, declinar de responder, uma a uma – e, ao final, até a todas, se for o caso –, as perguntas que lhe vierem a ser dirigidas, tudo sob o devido registro processual; mas não é direito dele dirigir e conduzir materialmente o próprio ato judicial em si. Fosse pouco, vale por fim registrar que o ato processual reclamado sequer se acha definitivamente superado ou fulminado por preclusão; consabido que especificamente ele, em sede processual penal, pode ser determinado pelo juízo (de ofício ou a pedido), em momentos adiante, isso sem contar a previsão expressa de sua realização na segunda fase do processo, acaso a tanto se chegue. Ante o exposto, NÃO CONHEÇO DO HABEAS CORPUS.” (grifei) Pois bem. Inicialmente, deve-se esclarecer que o interrogatório, embora conduzido pelo d. Juízo, é ato de defesa, muitas vezes, a única oportunidade de o réu exercer a sua autodefesa na instrução criminal. Nesse aspecto, muito bem pontuado pelo Dr. Durval Tadeu Guimarães, Subprocurador-Geral da República (fl. 665): “A garantia constitucional assegura ao réu o direito de permanecer em silêncio no interrogatório, e não de permanecer em silêncio somente em relação às perguntas da acusação e do juiz, sobretudo deste último, que atua de forma imparcial, vale dizer, não possui interesse na condenação nem na absolvição do réu, senão na busca da verdade real, que ficaria prejudicada em face da escolha pelo réu de quem lhe poderá fazer questionamentos para a elucidação dos fatos.” (grifei) Ocorre que o Código de Processo Penal não é claro sobre a possibilidade de o réu exercer o seu direito ao silêncio, quanto ao mérito, em bloco. De outra forma, não proscreve a possibilidade, plausível até como forma de economia processual, já que o réu pode exercer sua autodefesa de forma livre, não havendo razões para se indeferir liminarmente que se manifeste sob a condução das perguntas de seu patrono. Isso porque o interrogatório possui duas partes, e não apenas a identificação do acusado, quando o direito ao silêncio pode ser mitigado, vejamos: “A primeira parte do interrogatório não se relaciona com o direito de não produzir prova contra si. O direito a não se autoincriminar diz respeito ao mérito da pretensão punitiva, não à identificação do investigado/acusado” (RHC 126.362/BA, Sexta Turma, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 29/09/2020, grifei) Em outras palavras, quanto ao mérito, a autodefesa se exerce de modo livre, desimpedido e voluntário. No mesmo sentido, pronunciou a Sexta Turma deste eg. Tribunal Superior: “RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. MOMENTO DO INTERROGATÓRIO. ÚLTIMO ATO DA INSTRUÇÃO. MAIOR EFETIVIDADE A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. PRECLUSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Por ocasião do julgamento do HC n. 127.900/AM, ocorrido em 3/3/2016 (DJe 3/8/2016), o Pleno do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o rito processual para o interrogatório, previsto no art. 400 do Código de Processo Penal, deve ser aplicado a todos os procedimentos regidos por leis especiais. Isso porque a Lei n. 11.719/2008 (que deu nova redação ao referido art. 400) prepondera sobre as disposições em sentido contrário previstas em legislação especial, por se tratar de lei posterior mais benéfica ao acusado (lex mitior). 2. De modo a não comprometer o princípio da segurança jurídica dos feitos já sentenciados (CR, art. 5º, XXXVI), houve modulação dos efeitos da decisão: a Corte Suprema estabeleceu que essa nova orientação somente deve ser aplicada aos processos cuja instrução ainda não se haja encerrado. 3. Se nem a doutrina nem a jurisprudência ignoram a importância de que se reveste o interrogatório judicial – cuja natureza jurídica permite qualificá-lo como ato essencialmente de defesa -, não é necessária para o reconhecimento da nulidade processual, nos casos em que o interrogatório do réu tenha sido realizado no início da instrução, a comprovação de efetivo prejuízo à defesa, se do processo resultou condenação. Precedente. 4. O interrogatório é, em verdade, o momento ótimo do acusado, o seu “dia na Corte” (day in Court), a única oportunidade, ao longo de todo o processo, em que ele tem voz ativa e livre para, se assim o desejar, dar sua versão dos fatos, rebater os argumentos, as narrativas e as provas do órgão acusador, apresentar álibis, indicar provas, justificar atitudes, dizer, enfim, tudo o que lhe pareça importante para a sua defesa, além, é claro, de responder às perguntas que quiser responder, de modo livre, desimpedido e voluntário. 5. Não há como se imputar à defesa do acusado o ônus de comprovar eventual prejuízo em decorrência de uma ilegalidade, para a qual não deu causa e em processo que já lhe ensejou sentença condenatória. Isso porque não há, num processo penal, prejuízo maior do que uma condenação resultante de um procedimento que não respeitou as diretrizes legais e tampouco observou determinadas garantias constitucionais do réu (no caso, a do contraditório e a da ampla defesa). 6. Uma vez fixada a compreensão pela desnecessidade de a defesa ter de demonstrar eventual prejuízo decorrente da inversão da ordem do interrogatório do réu, em processo do qual resultou a condenação, também não se mostra imprescindível, para o reconhecimento da nulidade, que a defesa tenha alegado o vício processual já na própria audiência de instrução. 7. Porque reconhecida a nulidade do interrogatório do recorrente, com a determinação de que o Juízo de primeiro grau proceda à nova realização do ato, fica prejudicada a análise das demais matérias suscitadas neste recurso (reconhecimento da minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas, fixação do regime aberto e substituição da reprimenda privativa de liberdade por restritivas de direitos). 8. Recurso especial provido, para anular o interrogatório do recorrente e determinar que o Juízo de primeiro grau proceda à nova realização do ato (Processo n. 0000079-90.2016.8.26.0592, da Vara Criminal da Comarca de Tupã – SP).” (REsp 1825622/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 28/10/2020, grifei) No caso concreto, merecem destaques dois pontos: a insurgência da d. Defesa no momento da própria audiência (de forma a afastar a preclusão) e a efetiva impossibilidade, ao fim, de o réu exercer o seu direito de autodefesa. Vejamos, trechos da audiência, que bem demonstram isso (fls. 582-583): “Weryd Simões, Oab/Pe 43.967 [Advogado do acusado José Lucas]: “Só um esclarecimento. A orientação da defesa técnica é que o Réu, especificamente o Réu José Lucas, para que responda tão somente as perguntas de seu advogado, utilizando o direito ao silêncio no que tange Vossa Excelência e ao Ministério Público. Então, a Defesa tem perguntas a formular para o Réu.” Fernanda Costa Garcia Perez [Promotora de Justiça]: “Pela ordem, Excelência. Ou ele [José Lucas] responde às perguntas ou se vale do direito ao silêncio. Escolher de quem ele [José Lucas] vai responder às perguntas, ou responder só perguntas da defesa técnica dele não é se valer do direito ao silêncio, a meu ver.” Maurício Pinto Filho [Juiz de Direito]: “Pois é. No meu entendimento, Dr., isso não é possível, ou ele fica em silêncio ou ele responde.” Weryd Simões, Oab/Pe 43.967 [Advogado do acusado José Lucas]: “Excelência, é possível e isso está amparado pelo Código de Processo Penal, mas a defesa só faz um registro. Inclusive, como foi bem esclarecido por Vossa Excelência, ele pode optar por fazer ou não, responder ou não qualquer pergunta. Então, o desejo do Réu é responder as perguntas da defesa e nós temos, sim, inúmeras perguntas a fazer para o Réu.” Maurício Pinto Filho [Juiz de Direito]: “Entendo, Dr., mas, quando perguntado se ele [José Lucas] vai ficar em silêncio ou vai responder, ele me falou que vai ficar em silêncio, e como o depoimento é um ato pessoal, então acho que cabe a ele. Então, assim, o Sr. deveria ter orientado ele a dizer o que você está me dizendo.” Weryd Simões, Oab/Pe 43.967 [Advogado do acusado José Lucas]: “Excelência, é possível que ele não tenha compreendido a pergunta, ai eu lhe peço para refazer a pergunta para saber se ele quer responder às perguntas de seu advogado.” Maurício Pinto Filho [Juiz de Direito]: “Tá ok., vou refazer. José Lucas, o Sr. quer falar ou ficar em silêncio?” José Lucas Alves de Araújo: “Ficar em silêncio.” Mauricio Pinto Filho [Juiz de Direito]: “Ah, então pronto.” Weryd Simões, Oab/Pe 43.967 [Advogado do acusado José Lucas]: “José Lucas, nós conversamos antes da audiência e a orientação da defesa é que você responda às perguntas de seu advogado. Você vai responder as perguntas da defesa?” José Lucas Alves de Araújo: “Sim, Sr.” Weryd Simões, Oab/Pe 43.967 [Advogado do acusado José Lucas]: “Eu acho que agora ficou claro, Excelência.” Mauricio Pinto Filho [Juiz de Direito]: “Tá ok, Dr., mas eu não vou deferir este tipo de conduta. O Sr. pode recorrer, porque está indeferido, ou ele responde às perguntas de todos ou não, ou ele fica em silêncio.” Weryd Simões, Oab/Pe 43.967 [Advogado do acusado José Lucas]: “Só peço que Vossa Excelência, por favor, faça constar em ata a forma de como ficou esclarecido pelo Réu. Ele vai manter o silêncio das perguntas do Magistrado e do Ministério Público, mas responderá as perguntas da defesa, em caso de deferimento.” Mauricio Pinto Filho [Juiz de Direito]: “Ok. Pode constar em ata, por gentileza.” Em face das peculiaridades do caso concreto, como dito, o réu acabou por não exercer o seu direito de palavra durante a instrução processual. Portanto, t endo-se como direito do acusado a possibilidade de autodefesa, que não se confunde com o direito ao silêncio e o de não produzir provas contra si mesmo, assim como que a d. Defesa se insurgiu na própria audiência, da mesma forma que a renovação do interrogatório e dos prazos seguintes não trará in casu prejuízo maior à causa do que uma eventual declaração futura de nulidade, tenho que a ordem deva ser concedida. Diante do exposto, não conheço do habeas corpus. Concedo a ordem, de ofício, para que, confirmando a liminar, nova audiência de instrução seja realizada, oportunizando-se, ao paciente, seu interrogatório (a identificação pessoal é obrigatória), assim como se manifestar livremente quanto ao mérito, seja de forma espontânea ou sob condução de perguntas de qualquer das autoridades, especialmente, do seu próprio patrocínio. Por conseguinte, sejam os prazos subsequentes renovados, sem prejuízo da renovação dos eventuais atos já praticados. Vista dos autos ao d. Ministério Público Federal. Intime-se, com urgência o d. Julgador de origem. P. I. C. Brasília, 07 de dezembro de 2020. Ministro Felix Fischer Relator (Ministro FELIX FISCHER, 09/12/2020)


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Pedro Ganem

Redator do Canal Ciências Criminais

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