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O submundo da execução penal e a tal da regressão cautelar de regime

O submundo da execução penal e a tal da regressão cautelar de regime

Quando falamos sobre processo penal, inexoravelmente devemos ter como ponto de partida o princípio da legalidade: ao Estado só é permitido fazer aquilo que está previsto em lei, sob pena de ilegalidade do ato e, também, de possível constrangimento ilegal.

A lei, portanto, é que delimita o que as autoridades públicas podem ou não fazer. É a lei, outrossim, que estabelece o procedimento de execução de sentenças penais condenatórias.

Principalmente no que tange às punições – mesmo que disciplinares -, o princípio da legalidade deve ser respeitado estritamente: o que não está previsto, expressamente em lei, é defeso, inadmissível, ilegal e nulo.

A Constituição Federal, como é cediço, prevê que não há pena – qualquer seja seu caráter – sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX).

O mundo da execução penal, ou melhor dizendo, o submundo de cumprimento de sentenças penais condenatórias, caracterizado pela subcultura da indiferença, do medo e da violência, não tem leis, porém, tem uma regra: a de que tudo vale, com exceção da lei.

Tudo vale, menos o princípio da legalidade. O Estado é completamente negligente e omisso na fiscalização, construção e manutenção de presídios em condições – minimamente – adequadas.

Ao contrário: com a sua omissão e indiferença, o Poder Público incentiva, inspira e promove o incremento da violência nos presídios, de massacres, mortes e atrocidades; violência esta que reflete aqui fora – já que diversos crimes praticados extramuros são comandados intramuros.

O Estado não cuida de sua própria casa, mesmo se tratando de um ambiente físico fechado e delimitado. Ela é uma bagunça, é uma zorra total, não tem limites, não tem leis. Tudo vale, menos a lei.

Decapitações, num ambiente fechado que deveria ser comandado pelo Estado, através de agentes de segurança, são frequentes; mutilações; violações sexuais de presos ou de visitantes; entrada de drogas, armas e aparelhos celulares; enfim, sem dúvidas, a execução penal brasileira é um submundo, sem leis, cujo único objetivo é sobreviver [o que é muito diferente do ideal de cumprir adequadamente a pena e se preparar para um “harmônico e pacífico retorno ao convívio social”], como na selva: só os mais fortes se sobressaem; e para que seja possível sobreviver nas masmorras brasileiras, só há uma maneira: praticando crimes todos os dias.

Eis o disparate: o sujeito é preso e condenado a cumprir pena porque delinquiu; no cárcere, cumprindo a sua pena, se vê obrigado a delinquir todos os dias de sua vida intramuros para que possa – tentar – sobreviver.

Não se reabilita ninguém para o convívio social; faz-se justamente o oposto: habilita-se para o ingresso, de vez, definitivo e irrevogável, no mundo do crime. O crime torna-se um hábito, algo normal. O delito passa a ser a única opção. Até porque, sem ele, intramuros, a sobrevivência fica difícil, senão impossível.  

O Poder Judiciário, que deveria ser o guardião da legalidade, da ordem jurídica, chancela e incentiva este quadro: o quadro de que os presos não valem – nem o – nada. Autoriza o submundo sem leis e pior: aplica punições não previstas em lei.

Não haveria exemplo melhor do que a aplicação da célebre sanção-disciplinar-”cautelar” da regressão “cautelar” de regime.

Essa “modalidade” de regressão não está sequer prevista na Lei de Execuções Penais. Isso, num país sério, já bastaria para evidenciar a sua ilegalidade e inadmissibilidade.

Novamente: não podemos esquecer – ou, melhor dizendo: não poderíamos esquecer – do princípio da legalidade (que está mais para princípio da ilegalidade!). Se não há prévia e clara estipulação legal do ato penalizador, não pode o Estado praticá-lo! É uma regra elementar, simples e clara, todavia, surrada e ignorada pelos Tribunais pátrios.

A “regressão cautelar de regime” vem sendo aplicada aos chamados presos – não podemos esquecer – SUPOSTAMENTE faltosos, que são aqueles que, no cumprimento da sentença, se envolvem em alguma infração disciplinar.

Todavia, o equívoco e a ilegalidade da aplicação desta medida-sanção-cautelar-de-cunho-antecipatório-de-consequência-de-reconhecimento-de-falta-grave salta aos olhos.

A um porque, como já apontado, a Lei nº 7.210/1984 não prevê e, por conseguinte, não admite a regressão “cautelar” de regime. Macula-se, assim, o preceito da [i]legalidade.

Eis o que dispõe o artigo 45, caput, da LEP: “não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar.”

Aliás, “de vez em quando”, é bom (re)lembrar – também! – da Constituição Federal. E o que ela prevê? Bem, reitera-se: está lá, no artigo 5º, inciso XXXIX, que “não há pena sem prévia cominação legal.”

Logo, a pergunta é: como pode ser legítima a regressão “cautelar” – com aquela característica das cautelares brasileiras: a cautelar perpétua, que não tem duração máxima! – de regime?

A dois, pois, a Lei de Execução Penal estabelece procedimento “cautelar” próprio para os sujeitos que se envolvem em infrações disciplinares, admitindo somente as seguintes sanções, nos termos do artigo 53 da Lei em voga:

Art. 53. Constituem sanções disciplinares:
I - advertência verbal;
II - repreensão;
III - suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);
IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no artigo 88 desta Lei.
V - inclusão no regime disciplinar diferenciado.

Veja-se que a “sanção-medida-cautelar-de-cunho-antecipatório-de-reconhecimento-de-falta-grave” de “regressão cautelar” não integra o rol taxativo do artigo. Outrossim, não é contemplada no artigo 118 da LEP, que prevê apenas a possibilidade de regressão definitiva.

Não bastasse, a Lei nº 7.210/84 consagra a sanção de isolamento do faltoso, que se assemelha a uma regressão “cautelar”, contudo, ex vi legis, o isolamento não deve ocorrer mediante regressão de regime, senão em cela pŕópria ou em local adequado e, ainda, deve ser por tempo determinado. O isolamento, nos termos do artigo 58 do Diploma em testilha, não pode exceder a trinta dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado.

Logo, mesmo com base no inexistente “Poder Geral de Cautela” na fase de execução penal – tão invocado para justificar o injustificável (a regressão “cautelar”) -, revela-se manifestamente ilegal e ilegítima, por afronta a disposições expressas da Lei n.º 7,210/1984, bem como à Constituição da República de 1988, a aplicação da sanção-medida-cautelar-disciplinar da regressão “cautelar” de regime.

O que a Lei de Execução Penal permite não é a regressão “cautelar” – quase sempre permanente ou por tempo indefinido! -, senão o isolamento do faltoso, por prazo determinado e em local adequado, o qual deverá sempre ser comunicado ao Juízo.  

Assim, em terceiro lugar, pode-se afirmar que a regressão “cautelar” de regime não configura outra coisa, senão um procedimento ilegal e constrangedor, não contemplado em lei, cuja única finalidade é adiantar a aplicação DE CONSEQUÊNCIA do reconhecimento da prática de falta grave, qual seja, a regressão de regime (artigo 118 da LEP); regressão esta que, ex vi legis, só poderia ocorrer após a prévia oitiva do apenado (logo: jamais se poderia admitir a sua ocorrência de forma precoce, cautelar, antecipada), a teor do disposto no §2º do artigo 118 da LEP, cujo teor se transcreve:

Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:
I - praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;
§2º Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido previamente o condenado.

Adiantamento este que é temerário, afinal, para além de não ser admitido legalmente, nada obsta que o sujeito seja absolvido em relação ao fato disciplinar imputado. A pergunta é: e aí? como o Estado vai devolver ao sujeito o indevido período de restrição ilegal do direito de liberdade? Porque, em última análise, o que se procedeu foi uma indevida e precoce punição por antecipação, contra legem ainda, vez que não admitida pela Lei de Execuções Penais!

“O poder de cautela” não autoriza que magistrados fixem medidas, com nítido caráter de sanção ou de antecipação das consequências do reconhecimento de uma falta grave, não previstas expressamente em lei.

A forma como a jurisprudência brasileira vem decidindo é preocupante. O decisionismo, em manifesta contradição à lei, é evidente. Basta um exemplo, relativo a regressão “cautelar” de regime, para demonstrar isso.

O §2º do artigo 118 da LEP, repisa-se, assevera que o condenado somente poderá ser regredido em razão da prática de falta grave se for ouvido previamente. Ipsis litteris: “§2º Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido previamente o condenado.”

E qual o posicionamento da jurisprudência a respeito. Bem… Vejamos:

AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO. INSURGÊNCIA QUANTO À REGRESSÃOCAUTELAR DE REGIME EM RAZÃO DO COMETIMENTO DE FALTA GRAVE. Consoante o e. Supremo Tribunal Federal, cometida falta grave pelo apenado, a regressão cautelar para o regime mais gravoso independe de prévia audiência, não havendo violação ao art. 118, § 2º, da Lei de Execução Penal. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (Agravo Nº 70072884091, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 18/05/2017).

Isso mesmo: “cometida falta grave pelo apenado, a regressão cautelar [que não é prevista em lei] para o regime mais gravoso independe de prévia audiência, não havendo violação ao art. 118, §2º, da Lei de Execução Penal.” O entendimento da jurisprudência pátria é exatamente o oposto do disposto em lei!

A pergunta que não quer calar é: COMO ASSIM!? E a lei? De que adianta? Vale de algo em terrae brasilis? Onde consta que o procedimento obrigatório é “A”, sem exceções, deve-se ler que todos os demais procedimentos são admissíveis, menos o “A”, que não deve ser assegurado, por ser o único contemplado em lei?

Além do mais: a regressão de regime é uma consequência do reconhecimento de falta disciplinar de natureza grave. E, como consequência, não pode ser antecipada, muito menos em caráter “cautelar”, já que o poder geral de cautela, que se revela incompatível com o processo penal (a respeito, recomendo a leitura de Lopes Jr.), é, com muito maior razão, inadmissível na fase de execução penal, afinal, o sujeito já está com a sua liberdade cerceada e existem medidas disciplinares próprias às situações faltosas.

O parágrafo único do artigo 57 da Lei n.º 7.210/1984, por sinal, dispõe que somente as sanções previstas nos inciso III a V do artigo 53 podem ser aplicadas às faltas graves, quais sejam, respectivamente: suspensão ou restrição de direitos, isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, e inclusão no regime disciplinar diferenciado.

Não há, portanto, como se justificar a regressão “cautelar” – aquela “cautelar” de tempo indefinido! – de regime, que não representa outra coisa, senão um adiantamento de incerta CONSEQUÊNCIA do RECONHECIMENTO de falta grave – e não consequência da imputação de falta grave!

Como costuma bradar Lenio Streck: haja bunker e comida para estocar.

Aquela famigerada frase: “O Estado sou eu” / “A lei sou eu” / “Esse cara sou eu” nunca esteve tão em voga… 

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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