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O tempo, os antecedentes criminais e os direitos de personalidade

O tempo, os antecedentes criminais e os direitos de personalidade   

A tutela constitucional da dignidade humana envolve, logicamente, a proteção e a efetivação de diversos outros direitos e bens jurídicos essenciais, até porque a dignidade não é algo que se exaure com a garantia de um único direito.

Nessa linha, não se questiona a necessidade, porquanto inerente à própria dignidade, de tutela dos direitos de personalidade, da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF).

Ademais, como corolário desta proteção fundamental, surgem às pessoas o direito de serem elas mesmas, considerando que a cada um é dado viver à sua maneira e que cada um tem a personalidade que lhe foi possível – dentre as suas condições de vida – ter.

Como forma de efetivação dos direitos de personalidade, há o que se pode chamar (numa abordagem bastante singela) de direito ao esquecimento, abordado, neste espaço, sob a ótica do right to privacy (direito de ter a privacidade respeitada) e do right to be let alone (direito de ser deixado só ou em paz).

O right to privacy e o right to be let alone surgiram, segundo Assis Zanini (2015, sp.), nos Estados Unidos a partir de um artigo publicado em 1890 por Samuel Warren e Louis Brandeis, no qual advogam existir uma gama de direitos decorrentes da personalidade humana cuja função seria, dentre outras, a de garantir ao “indivíduo uma ampla liberdade contra intromissões não desejadas em sua vida, tutelando seus pensamentos, seus sentimentos, suas emoções, seus dados pessoais e até mesmo seu nome.”

Partindo desta perspectiva, o escopo deste trabalho é averiguar se, da relação existente entre o direito penal, o tempo e os direitos de personalidade, revela-se legítima (ou não) a utilização, pelos aplicadores do direito, de condenações penais pretéritas como fundamento para incrementar a pena-base, sob a justificativa da existência de “maus antecedentes”.

De início, insta salientar que o direito penal em nada se confunde com os demais ramos do ordenamento jurídico, tais como o civil, tributário etc.

Entre as particularidades que diferenciam, por exemplo, o penal do cível, além da característica da ultima ratio daquele, pode-se afirmar que um dos principais critérios de diferenciação é a existência de notório interesse público na solução das pretensões penais aventadas em juízo (não se quer dizer, com isso, que as pretensões deduzidas na área cível não se revistam de interesse público, mas sim que o interesse público é mais acentuado na persecução e na execução penal).

Tanto é assim que, na seara do processo penal, salvante raras exceções, somente o Ministério Público detém legitimidade para ajuizar ação penal (ao contrário do que se procede no processo civil, em que o particular, por intermédio do seu procurador, pode ingressar em juízo, p.  ex.), a fim de apurar eventuais infrações penais.

De outra banda, importante destacar que o “penal” (em sentido amplo) guarda uma íntima relação com o tempo, pois, consoante Carnelutti (2009), o processo penal destina-se a realizar uma retrospectiva do fato supostamente delituoso: busca-se, no presente, descobrir algo ocorrido no passado.

Eis a característica temporal na persecutio criminis: a retrospectividade.

Esta relação do direito penal com o tempo, todavia, muda de faceta, ao menos no plano do dever ser, quando do início do processo de execução penal: existindo uma sentença condenatória definitiva, não mais se almeja descobrir a ocorrência de uma infração penal perpetrada no passado – que restou confirmada no édito condenatório -, mas sim executar a sentença e proporcionar condições para a “harmônica reintegração social” dos condenados (art. 1º da LEP).

Ou seja, é clarividente existir uma intrínseca relação entre o penal e o tempo: o processo destina-se a descobrir, no presente, algo ocorrido no passado; a execução da pena almeja, além de castigar o sujeito, “reeducar” e “reinseri-lo”, no futuro, ao seio social.

Pode-se dizer, portanto, na esteira das lições do Min. do STJ, Felipe Salomão (REsp nº 1.334.097/RJ), que processo penal é memória: é a conexão do presente com o passado; e que a execução penal é esperança: é o vínculo do futuro com o presente.

Eis a relação entre o penal e o tempo. E, a partir deste raciocínio, é possível chegar a uma importante constatação, lógica e inarredável: satisfeita a pretensão punitiva e expirada a pretensão executória do Estado, a qual se extingue com a extinção da punibilidade do sujeito (que ocorre, em regra, com o cumprimento da pena), desaparece, finda e encerra o interesse estatal (de penalização) naquele fato já reprimido, e, consequentemente, no ex-detento, que, no jargão popular, já pagou as suas dívidas com a sociedade e não mais é custodiado nas más-morras[1] brasileiras.

Trocando miúdos: da data da prática do fato delituoso até o cumprimento integral da pena pelo sentenciado, o fato interessa ao Estado e se reveste de notório interesse público; uma vez extinta a pena e a punibilidade do sujeito, extingue-se conjuntamente a notoriedade do interesse (punitivo) naquele fato, em especial porque não mais se busca a memória do delito e tampouco castigar o sujeito, senão reinseri-lo socialmente (relação esperançosa).

Não há que se falar, portanto, que, com o encerramento da execução penal, há um confronto (ou suposta preponderância do primeiro) entre o direito à informação e o direito ao esquecimento dos condenados.

Não se tratando de infração penal de cunho histórico, cuja lembrança se faria necessária para o aprimoramento da civilização (p. ex. holocausto, que não pode ser esquecido, até para que não se repita), o direito ao esquecimento deve ser garantido aos sujeitos que já cumpriram a sua pena, do contrário será impossível o reajuste (ou o ajuste num ambiente social desajustado desde sempre) à sociedade.

Além disso, os direitos de personalidade, tais como a privacidade, a intimidade e a imagem social de “condenados”, simplesmente pelo fato de já terem delinquido, não deixam de ser direitos individuais de primeira geração (ou dimensão, como preferirem), positivados no núcleo duro do texto constitucional, e que acarretam imperiosas obrigações absenteístas e negativas ao ente estatal.

Nesse sentido, o right to privacy constitui uma forma de proteção da privacidade e da intimidade, assim como de tutela da dignidade humana, impedindo que o Estado intervenha, onde não mais há interesse público na repressão, senão na reinserção, desmesuradamente na vida privada das pessoas.

Do mesmo modo, o right to be let alone, aqui compreendido como o direito de ser deixado – finalmente! – em paz, evidencia a ilegitimidade da reprise de condenações penais pretéritas para fins de caracterização de maus antecedentes. 

Com efeito, a atribuição de preponderância ao suposto direito à informação sobre os direitos de personalidade, em não se tratando de fato de cunho histórico, cultural e educativo, e a admissão, de igual maneira, da reprise desenfreada do passado do indivíduo para puni-lo novamente, constituem – além de múltiplas punições por fato já penalizado pelo Estado – arbitrariedades flagrantemente inconstitucionais (ofensa aos artigos 1º, III, e 5º, X, ambos da CF) e inconvencionais (violação ao artigo 11., 1, 2 e 3, da CADH).

De outra banda, não se pode olvidar que a rememoração forçada dos deslizes pretéritos é altamente degradante à dignidade humana e constitui a eternização do delito (CARVALHO, 2015), em detrimento do ex-detento que não consegue ser esquecido e deixado em paz.

Não somente a reprise do crime é eterna e, por via de consequência, o estigma que recai sobre o agente também se torna algo perpétuo, como se eterniza a história das penas, que, seguramente, consoante Luigi Ferrajoli (apud CARVALHO, 2015, p. 29), é “mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos.”

No final das contas, o sentimento que o ex-condenado tem é o de que, inobstante tenha cumprido integralmente a sua sentença e “quitado as suas dívidas com a sociedade”, ele está em débito eterno, porque aquele fato, sobre o qual já foi castigado, nunca é esquecido, mas sempre ressuscitado ilimitadamente para prejudicá-lo.

Portanto, conclui-se:

1. Se com o encerramento do processo de execução penal finda, inexoravelmente, o interesse público do Estado em reprovar aquele fato criminoso, é inconstitucional e inconvencional a utilização de condenações penais pretéritas para o fim de caracterizar maus antecedentes, sendo a  observância do right to privacy e do right to be let alone medida imperativa no processo de reinserção social, afinal, com o fim da notoriedade do interesse de punir, que é transmutado no interesse de reinserir socialmente, os ex-apenados têm o direito de serem deixados em paz e de “não verem repassados a público os fatos que levaram à penitência (MENDES et al.  2007, p. 374)”, tendo as suas intimidades e privacidades respeitadas.  

Nesse diapasão, aliás, em alguns casos, não é desarrazoado afirmar que se tais condenações criminais não prestam para o mais, que é a reincidência, também não podem prestar para o menos, que são os maus antecedentes (nesse sentido já decidiu o STF, conforme HC nº 118.977/MS). 

2. É direito basilar o de que ninguém pode ser eternamente punido por seu passado, notadamente por situações pelas quais já fora penalizado pelo Estado.

Nessa ótica, o direito ao esquecimento se expressa como uma garantia de que os efeitos da condenação cessarão com o cumprimento dela, não podendo ela ser utilizada para caracterizar maus antecedentes ou de forma pública e ilimitada como suposto reflexo do “direito à informação”, de modo a restringir os direitos de intimidade e privacidade. Ou seja: se a pessoa não mais se reveste de notoriedade, e já cumpriu a sua sentença, tem todo o direito (fundamental) de ser deixada em paz.


REFERÊNCIAS  

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 118.977/MS, Relator: Min. Dias Toffoli, j. em 18/03/2014.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial REsp nº 1.334.097/RJ, Relator: Min. Felipe Salomão, j. em 28/05/2013.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução por Carlos Eduardo Trevelin Millan. 3. Tirage – São Paulo: Editora Pillares, 2009.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados Unidos. Disponível AQUI.


NOTAS

[1] A expressão é de Amilton Bueno Carvalho (2013, p. 99) e pode ser traduzida como a morte/destruição lenta e dolorosa da personalidade do apenado. Nos termos do autor, “(…) não basta que tu ‘morras’, a tua morte deve ser ‘má’ e no plural ‘más’”.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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