Entenda, de uma vez por todas, o que é a Teoria do Domínio do Fato
Teoria do domínio do fato, já ouviu falar? Nos tempos atuais, é muito difícil deixar de escutar alguma coisa sobre o tema. E pese a isso o fato de estarmos vivendo uma nova era do direito penal – o que não significa que o mesmo esteja melhor ou que tenha melhorado, longe disso –, uma era em que discutir direito penal ultrapassou a barreira dos programas policialescos dos canais regionais para passar aos programas policialescos do horário nobre – que alguns, insistentemente, insistem em chamar de noticiário, telejornal e afins.
Fato é que o direito penal deixou de ser um “produto” exclusivamente dos pobres (ainda que o tema não tenha deixado, em sua maioria, de abarcá-los), passando também a dominar as conversas dos ditos “poderosos”, local de fala no qual se insere a dita teoria do domínio do fato.
Ao contrário do que se pensa, a teoria do domínio do fato não é algo novo, não é uma nova “onda” do direito penal. Ela existe há muitos anos e, no âmbito do direito penal alemão, tem sido amplamente debatida e aperfeiçoada, sobretudo após meados dos anos 60 e 70 do século passado. Porém, no seio do direito brasileiro, a discussão acerca da teoria do domínio do fato somente emergiu após os debates travados durante os julgamentos da Ação Penal nº 470 (popularmente chamada de “mensalão”).
Em diversas passagens desse julgado, os ministros, com especial destaque ao ministro relator do acórdão (Joaquim Barbosa), usaram e abusaram, das mais variadas formas, das concepções teóricas que guarnecem a teoria do domínio do fato. O principal propulsor desse sentimento de apego e amor à construção acadêmica residiu na suposta facilidade que a mesma propiciaria aos julgadores no momento de fundamentar a responsabilidade penal dos “chefes” do esquema criminoso instalado nas mais altas instituições do poder público.
A fórmula, segundo a Suprema Corte, era até bastante simplória: “não obstante as condutas criminosas tenham sido executadas por ‘laranjas’ ou pessoas alheias à estrutura política do país, os detentores dos cargos públicos ligados à Presidência da República seriam também responsáveis, logo autores dos delitos, vez que detinham o domínio do fato e, portanto, controlavam a prática delitiva, ainda que não praticassem os atos de mão própria, podendo, inclusive, determinar a cessação dos atos a qualquer momento”.
Mas a pergunta que fica é: estamos aplicando tudo isso da maneira correta?
Incursionando-se nas origens da concepção, é de se ver que a teoria do domínio do fato ganhou notório destaque com as explanações de Hans Welzel, que propôs uma ideia amparada nos conceitos de ação final, estudados e aperfeiçoados também por ele. Para Welzel, a quem ação é o fazer final, o autor de uma conduta somente pode ser aquele que conduz o acontecimento causal conforme sua vontade final (segundo sua finalidade), o que lhe permitiria considerá-la como uma obra sua. Ou seja, a vontade de cometer o fato como próprio seria o elemento diferenciador entre o mero partícipe e o autor de uma conduta (ALFLEN, 2014. 87-88).
Contudo, a teoria do domínio do fato foi efetivamente desenhada pela pena de Claus Roxin, que, no seio de uma visão funcionalista (o que significa enxergar o direito penal a partir de sua função), trouxe uma nova roupagem ao instituto. Roxin (2000, p. 151) enxergava que o elemento diferenciador entre autor e partícipe estaria no domínio da ação, sendo, pois, autor aquele que assume o protagonismo da realização típica – logo, autor é aquele que pratica os elementos do tipo dependendo apenas de si e de seu atuar. Porém, além dessa hipótese, Roxin vislumbrou outras duas possibilidades de se “dominar o fato”.
Uma delas está no domínio da vontade (ROXIN, 2000, p. 166-167), situação na qual o autor da conduta não a pratica de mão própria, mas, sim, por meio da utilização de outro sujeito, que atua em erro ou em estado de não culpabilidade, sendo o típico caso do “homem de trás”.
Enquanto a outra forma, também conhecida como domínio funcional do fato (ROXIN, 2000, p. 307-398), consiste em verdadeira divisão de tarefas entre os diversos protagonistas da ação típica. Em suma, diversas pessoas possuem o mesmo objetivo em comum, a realização da ação típica, mas, para alcançá-lo, dividem a execução da ação em tarefas, competindo a cada um uma fração essencial do todo – tanto que a não execução de uma delas pode impossibilitar a consecução do objetivo comum –, sendo os participantes da empreitada considerados coautores do delito.
Com essa construção, Claus Roxin apresentou um conceito restritivo de autor e, de certa forma, limitou e muito o alcance do conceito unitário de autoria, pelo qual autor é todo mundo que tenha, de alguma forma, contribuído ao delito dando causa ao mesmo (teoria causal).
Todavia, o conceito mais interessante apresentado por Roxin vai além da mera teoria do domínio do fato, mas deriva dela, e hoje se mostra como o fundamento preferido do Judiciário e do Ministério Público brasileiros na “cruzada” contra a corrupção, principalmente na tarefa de justificar a responsabilidade penal de diretores de empresas, chefes de órgãos públicos e demais detentores de funções de chefia por crimes ocorridos no interior das respectivas instituições. O conceito consiste no conceito de domínio da organização.
Mas ao contrário do que o cotidiano forense brasileiro aponta, a teoria do domínio da organização não se reveste como fundamento adequado na punição de chefes, diretores, secretários e demais ocupantes de cargos ditos de “direção” pela mera posição que ocupa. A teoria exige o atendimento a alguns pressupostos bem restritivos. Para que se tenha um domínio de organização o tal “homem de trás” deve: i) dominar um aparato organizado de poder desvinculado da ordem jurídica (o que significa que seu nascedouro seja fora da ordem jurídica regular – a exemplo de grupos terroristas, máfias e Estados de Exceção); ii) possuir poder de mando (ser chefe de algo); e iii) poder emitir ordens que serão cumpridas por executores fungíveis – o que culmina na certeza de execução da ordem, sem a necessidade de se ordenar algo diretamente ao executor, pois a execução da ordem será decorrência lógica da própria hierarquia da organização (LEITE, 2014, p. 139).
A responsabilidade penal, conforme essa teoria do domínio da organização, veda sua extensão ao âmbito empresarial e dos órgãos públicos. Com relação aos órgãos públicos, porque possuem organização e divisão de tarefas taxativamente previstas em leis e regulamentos, cujos executores são nomeados em portarias e demais atos administrativos – o que põe em cheque o primeiro requisito (organismo apartado da ordem jurídica) e o terceiro (certeza na execução da ordem por executor fungível). No que toca às empresas, nunca é demais lembrar que são constituídas por pessoas jurídicas, ou seja, o seu nascedouro depende da lei e não pode ser apartado dela.
Outrossim, é de se ressaltar que a responsabilização, no caso empresarial, recairia fatalmente no caráter funcional, ou seja, o gerente ou diretor de uma empresa estariam sendo responsáveis pela simples posição que ocupam, sem refletir necessariamente na conduta que praticaram. O problema é maior em empresas de estrutura complexa, pois o poder de decisão dificilmente tem a força necessária para, por si, possibilitar a execução de ordem, vez que uma decisão deverá ser “vista e revista” por diversos setores administrativos. Para resolver tal problema, talvez, já se tenha passado da hora de discutirmos uma efetiva responsabilização penal da pessoa jurídica.
Destaque-se que o próprio Roxin, noutras oportunidades, asseverou que sua teoria não se aplica a organismos amparados na ordem jurídica.
Por fim, Jorge de Figueiredo Dias (2007, p. 799) ainda entende pela existência de uma teoria do domínio da decisão, por meio da qual permite-se a responsabilização penal daquele que produz ou cria de forma efetiva e cabal no executor (terceiro) o animus de atentar contra determinado bem jurídico, dominando, assim, a decisão do executor, vez que inculca a ideia e ainda acompanha de perto a tomada da decisão. O que é diferente, por suposto, da mera instigação, na qual alguém sugere ou aconselha a prática delitiva, mas não detém o domínio da decisão do executor, e, sim, mera influência.
Com isso, podemos dizer que teoria do domínio do fato não se resume numa fórmula simples (como quis o STF) e, mais, desdobra-se em diversos derivados que com ela não se confundem, como é típico caso da teoria do domínio da organização. O cotidiano forense, sobretudo quando olhamos para as decisões judiciais que têm emergido, clama por uma revisão no modo de ver e pensar o domínio do fato, pois estamos errando… e muito.
REFERÊNCIAS
ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. São Paulo: Saraiva, 2014.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal: parte geral. Tomo I. Coimbra e São Paulo: Coimbra Editora e Editora Revista dos Tribunais, 2007.
LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fato de terceiros: os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal. in: GRECO, Luís; et alli. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo:Marcial Pons, 2014, p. 139.
ROXIN. Claus. Autoría y dominio del hecho em derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2000.